Girasole foi a mais longeva casa noturna de Porto Alegre

A vida social de Porto Alegre já foi cenário de casas noturnas para quase todos os gostos, idades e bolsos. Mas nenhuma chegou tão longe quanto o Girasole. Inaugurado em 20 de julho de 1970 pelo cantor Edgar Pozzer e a então esposa Salli Regina (1939-2022), o espaço localizado na loja térrea de um prédio residencial de quatro andares no número 435 do prolongamento da rua Vieira de Castro, bairro Santana, deteve marcas dignas de um imaginário livro dos recordes gaúchos, por funcionar de forma ininterrupta e com o mesmo dono durante exatos 47 anos, três meses e 11 dias, até pedir a conta em 31 de outubro de 2017.

O negócio surgiu como bar-chopp de configuração simples porém caprichada, em sociedade com o primo Carlinhos Vial e o tecladista Heitor Barbosa (que deixariam o negócio no ano seguinte para cuidar de outros interesses). “Percorri a cidade até bater o olho no ponto, onde antes funcionaram açougue e depois farmácia”, conta o aposentado Edgar, 84 anos, à época morador da vizinha rua Jacinto Gomes e que já acumulava mais de uma década como crooner do Conjunto de Norberto Baldauf (1953-2010), mais popular e longevo grupo de bailes do Estado.

Igualmente decisivo foi o protagonismo de Salli Regina, mãe de seus dois filhos e cuja participação não se resumiu a colocar mãos à obra na reforma do espaço, respingando as galochas com argamassa. Seu toque pessoal seria responsável por um cardápio que incluía atrativos como água de coco servida na própria fruta, sanduíche de lagosta, uma receita exclusiva de bolinhos de queijo e o “Mafioso” – pão exclusivo, com recheio de linguiça calabresa, parmesão e pimenta dedo-de-moça, tudo servido em louças produzidas na serra gaúcha.

A primogênita Isabella Pozzer, hoje dona da pousada para “pets” Sítio Aulegria, acrescenta outro ingrediente que fez a diferença naqueles tempos: “Além de o pai se dar bem com todo mundo, o fato de minha mãe ter se formado em Publicidade e Propaganda na Pucrs (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e trabalhado em agências importantes do ramo, como Standard e MPM, acabou ajudando a divulgar o Girasole e atrair para lá muita gente bacana, direta ou indiretamente relacionada à Comunicação e outras áreas, de uma forma mágica”.

O sucesso do estabelecimento não apenas comprovou o tino comercial do dono, como serviu de vitrine permanente a uma consolidada carreira artística. Microfone em punho, ele brindava a clientela com um repertório de canções italianas (sua especialidade), boleros e outras bossas românticas, com olhos sempre atentos aos pedidos nas mesas e domínio virtuoso do único instrumento que sabia tocar: a caixa registradora.

Demorou alguns anos, mas a diminuta lacuna no miolo da casa inevitavelmente se converteu em pista de dança, ali improvisando-se uma boate. E das boas.

Diversão e romantismo em clima intimista

Durante mais de quatro décadas, Girasole foi um aconchegante refúgio boêmio no bairro Santana

Durante mais de quatro décadas, Girasole foi um aconchegante refúgio boêmio no bairro Santana

ACERVO EDGAR POZZER/REPRODUÇÃO/JC

Os 65 metros quadrados que faziam do Girasole uma das menores casas noturnas de Porto Alegre não o impediram de figurar no catálogo de lugares inesquecíveis da cidade. Pelo contrário: a curta distância entre as 15 mesas favorecia um clima intimista e ao mesmo tempo divertido, em meio ao qual se podia namorar sossegado ou interagir com outros frequentadores, dali surgindo inclusive amizades e romances inesperados, sob uma trilha sonora na medida, pratos de inspiração italiana, petiscos de primeira e os chopes sempre muito bem tirados.

E não foi por falta de concorrência no entorno. Além dos diversos luminosos distribuídos pelas ruas Ramiro Barcelos, Santana e – principalmente – avenida João Pessoa, a própria Jerônimo de Ornelas (com uma de suas esquinas a 50 metros do toldo de Edgar Pozzer) teve trechos pontilhados ao longo do tempo por bares e boates cuja lembrança se esvai. Caneco’s. Varanda. Twist. Sumériu’s. Barcelona. Arcabuz (que teve como sócio o então ponta-direita gremista Renato Portaluppi). Uns mais duradouros, outros menos. Mas nada que se comparasse ao Girasole.

Que o diga o engenheiro civil José Cláudio Volpe, 74 anos, ao ressaltar vínculos emocionais com a casa: “Amigo e vizinho do Edgar na rua Jacinto Gomes, desde a abertura eu ia direto ao Girasole com meus colegas da Pucrs. Ele também foi meu padrinho de casamento e ainda cantou a Ave Maria na cerimônia! Mesmo depois de formado e morando no Interior, continuei aparecendo no bar, inclusive para ver jogos do Grêmio. E os 92 anos de minha mãe comemoramos lá, com direito a valsa de aniversário e tudo”.

O número 435 da Vieira de Castro, em frente à praça posteriormente denominada João Paulo I, foi também palco de personagens marcantes na memória afetiva de três gerações. Seu Estrela, morador do prédio. Paulo Pelé, guardador de carros. Ivone Justo, cozinheira. Heitor Barbosa, tecladista. Paulo Justo, garçom do segundo ao último dia da casa. “Trabalhando na boate Intermezzo (na avenida Protásio Alves), aceitei o convite do Edgar, que cantava lá, para seguir com ele no novo negócio”, conta o ex-funcionário, aos 74 anos. “Fiquei de fora entre 1976 e 1997, mas acabei voltando.”

Muitas das passagens hilárias, aliás, estavam relacionadas ao formato “de bolso” da casa. Pozzer contribui com mais uma: “Para se esconder lá dentro era preciso apelar ao improviso. Certa noite, um jogador de basquete com 2 metros de altura soube que a noiva chegava à sua procura. O porteiro segurou ela do lado de fora para ganharmos tempo, enquanto ele se deitava atrás das cadeiras, tapado pelas pernas de um grupo de jogadores boêmios do Grêmio. A moça vasculhou até a cozinha e foi embora sem encontrar o fujão, que não escapou da gozação da turma”.

Uma história puxa outra e ele tira mais uma da manga: “Teve um garçom que merecidamente apelidamos de ‘Desastre”, porque vivia derrubando tudo, cada vez era um vexame diferente, além do prejuízo. Ao atender a mesa onde o famoso publicitário Antônio Mafuz (1921-2005) havia pedido um prato de filé com acompanhamentos, o estabanado deixou cair quase toda a comida no colo do freguês, que não reclamou e ainda conseguiu agarrar o bife no ar, para em seguida comer com a mão, sob gargalhadas gerais em um ambiente onde todos se conheciam”.

Pés-de-valsa

Cena do movimentado interior do Girasole, nos anos 1980

Cena do movimentado interior do Girasole, nos anos 1980

ACERVO EDGAR POZZER/REPRODUÇÃO/JC

No fim da primeira década de atividades, a combinação de palco e pista próximos proporcionava movimento intenso também na coluna central. Escoltado por Heitor Barbosa no teclado ou colegas de música como o pianista Norberto Baldauf (1928-2018) e o guitarrista Raul Lima (1924-2015), Pozzer botava o pessoal para bailar de rosto colado. “No Girasole eu encontrei o melhor lugar para praticar o que aprendi com meu esposo em cursos de danças-de-salão. Que saudade!”, suspira a pensionista Terezinha Dalla Costa, 78 anos, frequentadora durante tanto tempo que perdeu as contas.

Opinião parecida tem a servidora estadual Angela Rocha, 68 anos. Com uma diferença: ela e o marido, Mario, sequer gostavam de dançar. “Dava gosto de ver o movimento na pista”, elogia. “Nos primórdios da casa, a gente ia várias noites por semana para curtir música, chopp, picadinhos à milanesa, calzones e bolinhos de queijo. Nossa filha (hoje com 45 anos) nos acompanhava desde bebê, deitadinha em um moisés. Já adulta, era sempre saudada pelo Edgar com a canção italiana Roberta (Pepino di Capri/1963), em homenagem ao nome dela.”

Funcionando na prática também como boate, o estabelecimento manteve o pique sem grandes mudanças de forma ou conteúdo até 1996, quando se chegou a um consenso interno de que a casa tinha potencial para explorar novas possibilidades. Com o sinal-verde do pai e apoio logístico da irmã Isabella, coube ao caçula Edgar ‘Alemão’ Júnior implantar em 1996 uma novidade que marcaria época na cidade: o projeto Girasole Pub, com uma agenda paralela de atrações voltadas ao público jovem, em noites alternadas à da programação saudosista dos “coroas”.

Novo fôlego

Atrações como Claus e Vanessa marcaram a jornada do Girasole Pub

Atrações como Claus e Vanessa marcaram a jornada do Girasole Pub

ACERVO GIRASOLE/REPRODUÇÃO/JC

A ideia bombou, com lotação esgotada e filas do lado de fora para curtir alguns dos melhores músicos (emergentes ou já consagrados) na cena local de pop-rock, MPB, reggae e samba-rock. Nomes como Catuípe, Luka, Otto Gomes, Laís Tetour, Serginho Moah, Claus & Vanessa, Armandinho, Fernanda Copatti, Rafael Brasil, The Hard Working Band, Tonho Crocco. “Eu me apresentava apenas com voz e violão ou em trio, tocando músicas de Tim Maia, Bedeu, Cidade Negra e até Lupicínio Rodrigues”, relembra Crocco, 49 anos, adicionando uma peculiaridade:

“Quando eu era pequeno e morava com meus pais na rua Laurindo, ali pertinho, eles frequentavam o Girasole. Aí, anos mais tarde, eu estava lá fazendo shows. Inclusive meu primeiro vídeo postado no YouTube é de uma apresentação na casa em 2004. O ambiente, aliás, era bacana demais e muito disso se devia à presença do Alemão, um cara engraçado, agregador e sempre preocupado com cada detalhe. Teve uma noite em que levei o Seu Jorge (cantor e compositor carioca que alcançaria sucesso internacional) com a banda inteira, os caras adoraram o lugar”.

Anúncio do Girasole na imprensa local, do tempo em que os telefones fixos tinham seis dígitos

Anúncio do Girasole na imprensa local, do tempo em que os telefones fixos tinham seis dígitos

ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC

Algo raro mas não inédito em Porto Alegre, o funcionamento simultâneo de duas casas noturnas em um mesmo endereço já havia sido praticado em 1993-1995 pelas boates Fim de Século (música eletrônica) e Kizomba (pagode) na avenida Plínio Brasil Milano (bairro Auxiliadora). No caso do Girasole, entretanto, a dupla jogada durou bem mais e passou a exigir o reforço na divulgação, para que ficasse bastante clara essa alternância de atrações conforme o dia da semana. Tarefa assumida com o maior prazer pela filha Isabella, com seus conhecimentos de publicitária e psicóloga:

“Passei a ajudar principalmente na parte que se referia às noites comandadas pelo pai, com aquela frequência de público mais tradicional. Mandamos mensagens regulares por e-mail, oferecemos fichas de avaliação aos clientes nas mesas e aproveitamos o cadastro para manter o pessoal informado até sobre os eventos do pai em outros locais. Outra ação foi intensificar a programação temática, com noites dedicadas ao nhoque ou capelletti, além de atrativos como o karaokê, por exemplo. Conseguimos um resultado fantástico, resgatando até antigos clientes”.

O ex-garçom Paulinho, que atualmente carrega a bandeja em um bar na Zona Norte, compartilha um dos tantos episódios insólitos dessa época: “Na Copa do Mundo de 2002, quando as partidas passavam de manhã bem cedo na TV, muita gente ficava madrugada adentro no ‘Gira’ para ver os jogos do Brasil em uma TV de tela grande que o Edgar instalou perto do palco. Teve ocasião que cheguei às sete da noite e só saí no começo da tarde seguinte, porque o pessoal se empolgava com as vitórias e permanecia comemorando nas mesas até o meio-dia, pronto pra outra”.

A conta, por favor

Edgar Pozzer foi o bem humorado proprietário do Girasole por 47 anos

Edgar Pozzer foi o bem humorado proprietário do Girasole por 47 anos

ACERVO EDGAR POZZER/REPRODUÇÃO/JC

Trabalhando durante algumas tardes da semana em seu “escritório” nas mesas do Girasole, Edgar Pozzer sabia que o equilíbrio das contas dependia de um esforço crescente para quem já beirava os 80 anos. A casa se mantinha em movimento e os filhos faziam a sua parte, porém, o desafio diário de manter a casa esbarrava em questões como as regras cada vez mais complicadas para os estabelecimentos do setor, mudanças no comportamento do público e custos operacionais sacanas, principalmente o da locação do ponto comercial, prestes a receber um reajuste.

“Paguei o aluguel em dia durante aqueles quase 50 anos, de modo que se eu juntasse todo esse valor, daria para comprar o prédio inteiro”, diverte-se Edgar. Brincadeiras à parte, o fato é que os quase R$ 2 milhões investidos seriam suficientes para adquirir o espaço comercial e ainda sobraria um bom dinheiro. Mas a loja não estava à venda: pertencente ao Fundo de Saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (Ipergs), em seguida acabou em uma lista de 400 bens leiloáveis do patrimônio-geral do governo gaúcho.

Avisada pessoalmente ou por meio de postagens discretas nas redes sociais, a decisão de colocar um ponto final no Girasole pegou muita gente de surpresa. Mas não tinha jeito. Mesmo contrariado, todo mundo entendeu. Alguns até fizeram questão de comparecer para o derradeiro brinde na noite de 31 de outubro de 2017, uma terça-feira eternizada em seus corações como um encontro de doce nostalgia ao som do mais italiano dos cantores porto-alegrenses. Em vez de lágrimas, sorrisos de gratidão por tantos e ótimos momentos compartilhados.

Somente em junho de 2022 a loja seria levada a leilão público – sem trocar de mãos. E lá se vão mais de cinco anos de saudade, sublinhados pela placa em acrílico com o letreiro ainda a lembrar o inquilino de quase cinco décadas. Uma espiadela por entre as grades também revela o cartaz afixado à porta de madeira, indicando 566 meses / 2.466 semanas / 17.267 dias. “Bem que a praça ali em frente poderia se chamar Girasole”, emociona-se Isabella Pozzer. Na impossibilidade de alterar a denominação, ao menos um monumento seria bem-vindo. Alguém se habilita?

Cantor-galã

Edgar Pozzer soltando a voz e esbanjando carisma na TV Piratini (1962)

Edgar Pozzer soltando a voz e esbanjando carisma na TV Piratini (1962)

ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC

Nascido em 1938 na cidade de Galópolis, na serra gaúcha, Edgar Pozzer tinha 32 anos e figura carimbada no álbum musical de Porto Alegre quando decidiu quebrar o cofrinho para investir na abertura do Girasole, em um ramo que só conhecia como artista ou frequentador e no qual vários de seus colegas enveredaram, nem sempre com êxito. Essa trajetória havia começado na década de 1940, com a mudança dos Pozzer para Canela, onde o restaurante aberto pelo pai serviu de laboratório para o adolescente candidato a cantor, logo faturando prêmios na rádio local.

O período de serviço militar em Caxias do Sul seria aproveitado nas horas vagas com atuações na Orquestra dos Irmãos Guerra, encorajando o ragazzo de 20 anos a tentar a sorte na movimentada Porto Alegre de 1958. Após uma carreira-relâmpago como vendedor de enciclopédias, conseguiu chamar a atenção pelos dotes vocais, beleza e repertório – a conquista do segundo lugar nacional no concurso A Voz de Ouro ABC o catapultou a programas próprios na Rádio Farroupilha e TV Piratini, já merecedor dos apelidos de “Diabo Loiro” e “Cantor-Galã”.

Sua popularidade ganhou novo capítulo como crooner do Conjunto Melódico de Norberto Baldauf (1953-2010), mais popular grupo de bailes do Rio Grande do Sul e que, na mesma época, também havia aderido ao romantismo explícito da música italiana, em alta com Pepino Di Capri, Domenico Modugno e companhia. E não era só a mulherada a suspirar, mas também os anunciantes: Pozzer completava o orçamento como garoto-propaganda em anúncios – de magazines a cigarros – estampados em jornais e revistas.

Entre idas e vindas com a turma de Baldauf (da qual ele e o tecladista Heitor Barbosa são os únicos remanescentes), foi membro ativo do movimento Frente da Música Popular Gaúcha (1968), coletivo deflagrado para valorização dos músicos urbanos. E da década de 1980 em diante, lustrou sua bem-sucedida carreira solo com nove discos, a maioria independente e vendidos tanto em lojas especializadas quanto no próprio Girasole. Por essas e outras peripécias, em 2006 recebeu da Câmara de Vereadores o título honorífico de Cidadão de Porto Alegre.

O show não pode parar: após o encerramento das atividades do Girasole, Edgar continuou em plena atividade, com apresentações em eventos e jantares-dançantes nos clubes, repetindo algo que já fazia desde os tempos em que as dimensões da pequena-grande casa da rua Vieira de Castro nem sempre comportavam tamanho carinho. A entrada em cena de uma pandemia marota e outros contratempos da vida o obrigaram a uma pausa estratégica: enquanto isso, uma legião de fãs permanece em ritmo de espera.

Fonte: Jornal do Comércio

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