Os donos do futuro

Como o terneiro que ensaia os primeiros passos pelo campo, é correndo pelas pastagens, pulando as mangueiras e fingindo dirigir o trator que uma nova geração de produtores surge de mansinho e toma gosto pela lida. Apesar de se iniciar no mundo das brincadeiras, a sucessão é assunto sério e ganha espaço na gestão de propriedades rurais Brasil afora. Em um ano de pandemia em que a tentação de abandonar a atividade durante a alta bateu à porta de muita gente, quem resolveu ficar teve a certeza de que o futuro da pecuária e da Angus está nessa nova turminha que chega com mãos de ferro e focada em transformar fazendas em empresas. Como o pequeno João Francisco Cairoli, terceira geração da Fazenda Reconquista, de Alegrete (RS), que, com apenas um ano e meio, já prova que o amor ao campo vem de berço.

Na tentativa de garantir a continuidade do legado de famílias, criatórios de Angus vêm desenvolvendo projetos para assegurar a transição dos modelos patriarcais para um universo corporativo, em que filhos assumem a postura de sócios de holdings do agro. Um movimento que ganha corpo nas principais cabanhas e que geralmente começa cedo, antes mesmo de os pais pensarem em pendurar as botinas. “Tratar de sucessão não é falar de morte. É apenas uma forma de organizar a família para trabalhar em sociedade”, frisa o consultor e diretor da Safras & Cifras, Cilotér Borges Iribarrem.

O objetivo é evitar a fragmentação e o enfraquecimento dos negócios, algo tão comum entre operações familiares. Dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) indicam que apenas 30% das companhias sobrevivem à segunda geração e 5% à terceira. No agronegócio, consultores sinalizam que esse índice é ainda mais preocupante. “O risco é a pulverização das terras, o que é ruim porque se trata de um recomeço, de perda de escala e, algumas vezes, do desmonte do próprio patrimônio genético dos criatórios”, alerta Ricardo Gonçalves, CEO da Affectum Consultoria, responsável por alguns processos bem-sucedidos em criatórios de Angus.

Além de simplesmente garantir o futuro dos negócios da família, essa juventude que chega ao comando do agronegócio brasileiro quer mais e sabe que pode fazer a diferença. Eles estão dispostos a facilitar o uso da tecnologia, revolucionar o sistema de compra de insumos e serviços e mais preparados para uma nova gestão do patrimônio rural focada em resultados concretos. Como a jovem advogada de 31 anos Camila de Lara, que começou ainda menina tocando o gado com um graveto na mão e, desde 2015, passou a integrar o time operacional da Estância do Chalé, em Cachoeira do Sul (RS).

Camila e o pai a campo/ Crédito: Paola De Lara

Ela assumiu a gestão da propriedade e conta que agregou ao trazer o olhar de advogada que por anos atuou com Direito de Sucessões e Família em Porto Alegre (RS). “Contribui com a constituição de empresa e organização de um protocolo familiar. Nosso negócio é composto por uma unidade produtiva, com barragens e estradas que funcionam como um todo. Há três anos, constituímos nossa empresa e definimos as regras como exigência de união estável ou separação total de bens entre os integrantes da família como forma de proteger a fazenda”, indica a jovem, com a certeza de que o diálogo é a grande arma desse processo constante e eterno que é a sucessão.

No início, Camila até achou que para gerenciar a Estância do Chalé teria de estar diariamente a campo, andando a cavalo e cuidando das áreas de lavoura e pecuária. “Com o tempo, entendi que o escritório era o meu lugar”, diz Camila. Segundo ela, hoje, as atividades antes delegadas ao pai e aos tios, vêm sendo divididas com profissionais contratados. “Antigamente, os filhos que precisavam de um rumo eram enviados para trabalhar na fazenda. Hoje, os jovens estudam, vão morar no exterior, trabalhar em outros lugares e, depois, decidem voltar porque se reconhece a nobreza que é produzir alimentos.”, admite a criadora, que é a voz e os ouvidos da Angus Jovem no Conselho Técnico da Angus.

Protagonismo à prova 

Bons exemplos de sucessão geralmente vêm de propriedades onde patriarcas e matriarcas assumiram o papel fundamental de passar o bastão e criar entre os filhos um ambiente mais profissional. É o caso da GAP Genética, de Uruguaiana (RS), onde um projeto claro de sucessão foi desenhado pelo pecuarista Eduardo Linhares ainda nos anos 80. A decisão do tradicional criatório gaúcho foi transformar as fazendas em uma holding, e os herdeiros, em sócios. Hoje, a família trabalha unida e dá ao tema a seriedade que ele exige.

Para trabalhar na GAP, é preciso seguir à risca as regras estipuladas em um protocolo familiar desenhado pela própria família. A primeira exigência é ter trabalhado dois anos fora da GAP. Depois disso, o familiar ou cônjuge pode unir-se ao time da propriedade em um cargo de trainee – e com salário de trainee – por mais dois anos. Nesse período, precisa passar pelas diferentes áreas de produção (agricultura, pecuária, bovinos, equinos etc). Só então é possível escolher onde seguir ou até declinar do projeto, o que a criadora Angela Linhares garante já ter acontecido algumas vezes. Ao lado dos pais, irmãos, marido, filhos, sobrinhos, entre outros familiares, ela dedica-se à seleção dos plantéis. Mas, quando é Primavera e a Estância São Pedro abre suas portas para os clientes em busca de reprodutores, sempre acaba sobrando muito trabalho para todo mundo na família.

Para manter em dia o projeto familiar, de tempos em tempos, o protocolo da GAP é revisto. Em outubro de 2021, 28 integrantes das três gerações da família reuniram-se em Barrinha (SC) para comemorar os resultados da propriedade e revisar a Bíblia da GAP. “Ali tem tudo. Desde as regras para uso das casas da família até termos sobre regimes de casamento ou uniões estáveis. São regras que antecipam futuros problemas e são chanceladas por todos porque carregam alguns valores da família, como humildade, tolerância, união”, explica Angela.

O trabalho conta com consultorias externas e atualmente é realizado pela Safras & Cifras no âmbito familiar e pela Affectum Consultoria na parte patrimonial e tributária. “A intenção é definir bem as áreas de interseção entre família, negócio e patrimônio. Por isso, contamos com a experiência de quem vem de fora para colocar a família no divã”, reforça a criadora.

Tornar a fazenda uma holding como fez a GAP é um caminho excelente, mas não é o único. Na hora de fazer uma escolha, é importante observar a realidade da propriedade e o perfil da família. Ouvir pais, filhos, netos e profissionais especializados ajuda, assim como consultar outras famílias que adotaram sistemas similares.

Família GAP comemorou resultados e revisou protocolo/ Crédito: Eduardo Linhares

Geralmente, a transformação das fazendas em empresas é um caminho jurídico que dá maior flexibilidade, permitindo um ambiente societário mais harmônico e economia na tributação de operações e lucros. Contudo, há criadores que optam pelos chamados condomínios rurais e até por parcerias rurais, ações que viabilizam maior racionalidade na tomada de decisões e profissionalização. Cilotér Iribarrem alerta que a questão tributária não deve ser a motivação principal desse processo. “A harmonia entre os herdeiros é o mais importante. Brigar na Justiça no futuro sai muito mais caro.”

Outra propriedade que vem mostrando que a união é capaz de manter negócios pujantes é a Angus Rana, de Tibagi (SC). Abrindo espaço para a quinta geração à frente dos campos da família, o criador Ivo Arnt faz questão de integrar os filhos Rodrigo Arnt e Nilo Arnt no negócio, que inclui criação de Angus desde 1987. Tanto que usou as iniciais dos herdeiros para formar o afixo RANA, solidificando o projeto iniciado em 1921 por Ovídio e Levina Guimarães.

O filho Rodrigo agregou conhecimentos adquiridos no curso de Administração e Relações Internacionais para fomentar e qualificar a gestão financeira da propriedade, enquanto o irmão Nilo dedica-se à área de tecnologia em busca de projetos focados em agropecuária 4.0.

Liquidação necessária

Muitas vezes, na falta de alguém para assumir a fazenda, o melhor caminho é liquidar o plantel e preservar a genética aprimorada ao longo dos anos vendendo o rebanho a um terceiro. Foi essa a escolha do pecuarista Léo Fraga Warszawsky. Criador de Angus desde 1995, ano em que importou os primeiros embriões, optou por liquidar o rebanho em 2021, uma vez que as duas filhas Lilian e Denise Silveira decidiram seguir caminhos diferentes. Lilian desde menina sempre mostrou talento para a arquiteta, e Denise optou pela carreira de cirurgiã-dentista. Mas a decisão foi solidificada quando os netos Matheus, de 12 anos, Rafael, de 8 anos, e Leo Neto, de 3 anos, também deram sinais de que o futuro estava em outros campos: os de futebol.

A saída foi programada para um excelente momento com demanda aquecida por animais Angus. Em leilão realizado em maio de 2021, ele faturou R$ 564 mil com a venda de exemplares para selecionadores de diversos municípios gaúchos e de outros estados, os quais foram orientados pela Assessoria Agropecuária FF Velloso & Dimas Rocha. Com o capital, ele investiu em animais para engorda e na manutenção da propriedade. “Quero conviver mais com a minha família e com meus netos”, acrescenta.

A voz dos jovens

Com o aumento da expectativa de vida, não é raro ver propriedades onde três gerações atuam juntas na gestão das fazendas. Com ideias arrojadas, a gurizada geralmente traz uma contribuição extra agregando o mundo digital à realidade do campo. Cada vez é mais comum ver a nova geração orientando seus pais sobre compras de insumos por aplicativos e comercialização digital da produção.

O criador e vice-presidente da Angus, Caio Vianna, da Cabanha São Xavier, de Tupanciretã (RS), conta com os filhos Camilo e Mariana como sócios e é um dos incentivadores desse processo de tecnificação da gestão rural para atração das novas gerações. “Ficar na terra não é mais sinônimo de falta de opção ou de coragem para enfrentar a cidade grande. A juventude que chega agora na administração das propriedades sabe bem o que quer do seu futuro e traz um novo ar à gestão rural.” Os millennials do agronegócio, acredita ele, não são conectados ao wi-fi ou a plataformas digitais. “São uma geração independente e consciente da responsabilidade que recebeu ao administrar um planeta que precisa de cuidados. O novo produtor rural aprendeu com seus pais e avós a amar o campo pela sua essência, a valorizar a vida e o alimento”, ressalta.

No dia a dia na fazenda, eles agregam muito. Enquanto o filho Camilo acelerou o processo de tomadas de decisão e dinâmicas comerciais, Marina assumiu a coordenação dos setores de Recursos Humanos e Financeiro, melhorando sensivelmente a comunicação interna e externa da propriedade. “É muito importante a chegada deles para a modernização, uso de tecnologia digital, inovação da gestão, mesclada com os conceitos já estabelecidos e permanentes de eficiência financeira do negócio”, pondera Caio Vianna.

O que não pode deixar de tocar na playlist do novo campo

1 – Valorização do uso de tecnologia;

2 – Incentivo à segmentação. Os jovens estão dispostos a dividir tarefas, dedicando-se àquilo que são bons;

3 – Essa geração é nativa da internet e das compras digitais. Usa grupos de compras para aquisições vantajosas a todos;

4 – O novo gestor quer a melhor condição custo-benefício de fornecedores. Por isso, multinacionais estão agregando serviços à comercialização de produtos;

5 – Os jovens sabem que produzir é preservar. Zelam pela sustentabilidade e pela seleção pela eficiência;

6 – O novo produtor usa as redes sociais e o marketing digital como ferramenta de desenvolvimento e defesa do campo.

Educação é a chave

Crédito: Ismael Solé

Um bom caminho para garantir uma sucessão tranquila é investir na educação dos herdeiros. E isso não significa que os filhos e filhas precisarão cursar Medicina Veterinária, Zootecnia ou Agronomia. Muito pelo contrário. Deixar cada um seguir seu caminho é essencial para negócios promissores e famílias felizes. Mas herdeiros do agro precisam sim de informação.

Um bom começo é trabalhar a comunicação dentro da família, mostrando desde cedo as potencialidades e dificuldades do negócio. “A infância é o momento em que se transmite a paixão, que é tão fundamental em qualquer empreendimento”, frisa o consultor Ricardo Gonçalves. Mas o especialista deixa um alerta: cuidado com o tradicional “choro” ao final de toda safra. “É muito comum ver gente que cresce ouvindo que o campo é ruim, que não dá dinheiro e que declina da atividade porque foi essa a mensagem que recebeu quando criança.”

Na Cabanha Solé, o criador Ismael Solé incentivou os filhos a terem uma outra profissão além das porteiras. O pecuarista sempre se desdobrou entre as atividades nas fazendas da família e o trabalho como engenheiro civil, assim como hoje faz Ismael Solé Filho. Ele divide-se entre a pecuária e a advocacia. No entanto, vender ou arrendar as propriedades nunca foi uma opção. “Desde pequeno frequento a fazenda. Gostava da função do gado, da pecuária. A gente aprende com os mais velhos a importância do trabalho no campo”, destaca Solé Filho.

Responsável por fazer os registros, comunicados, compras de sêmen e cuidar da contabilidade das fazendas localizadas em Cerrito e em Arroio Grande (RS), Solé Filho trouxe às propriedades um olhar inovador. Ao passar a gerir os negócios junto com o pai e o tio Telmo Laurence Solé, ele apostou no marketing e na consultoria técnica. “A gente trouxe mais tecnologia para o negócio. Era mais à moda antiga.”

Apesar de não se dedicar exclusivamente às fazendas de pecuária e agricultura, sempre que pode, Solé Filho leva a família para a fazenda. “Coloco todo mundo dentro do carro, o cachorro, as crianças, minha esposa, e vamos para fora”. Lá, o criador coloca os filhos Ismael Solé Neto e Betânia Fruet Solé no lombo do cavalo e cultiva, assim como fez seu pai, o amor e a valorização pelo que vem do campo.

O que deve constar em um protocolo base

1 – Missão, visão e valores da família;

2 – Criação de Conselhos e foros para a discussão de temas societários;

3 – Divisão de atribuições e tarefas entre sócios-proprietários, sócios-administradores, administradores e conselheiros;

4 – Decisões sobre aceite ou não de cônjuges no quadro da empresa;

5 – Definição sobre limites e autonomia dos gestores;

6 – Regras para entrar ou sair da sociedade;

7 – Regras para trabalhar na empresa;

8 – Definição sobre remuneração e reajustes salariais;

9 – Políticas de investimentos e distribuição de resultados;

10 – Práticas de proteção patrimonial;

11 – Regras de conduta de sócios, executivos e familiares;

12 – Regras para situações de conflitos de interesses individuais e coletivos;

13 – Lista de responsabilidades de cada agente;

14 – Regras para prestação de contas dos gestores aos sócios;

15 – Regras sobre uso do patrimônio, fazendas e demais propriedades;

16 – Periodicidade de revisão do protocolo e de deliberação de casos não previstos.

Caminhos da boa sucessão

1 – Separe família, patrimônio e negócio 

É preciso separar os ambientes e recursos de forma que todos os agentes entendam a que braço cabe cada parte dos bens.

2 – Divida tarefas 

É necessário que cada herdeiro, integrante da família e gestor entenda qual o seu papel de forma clara. Muitas vezes, o herdeiro pode também ser o gestor, mas é essencial que as atribuições sejam definidas para evitar interferências indevidas.

3 – Defina remunerações 

Indique de forma objetiva quais atribuições serão remuneradas e o valor a ser recebido por cada agente.

4 – Estabeleça as regas do jogo 

Crie um protocolo familiar, um documento que definida como se entra na sociedade, como se sai dela, como é estipulada a remuneração dos sócios e empregados e até o usos das propriedades pelos herdeiros. Cada família deve criar o seu, mas quanto mais detalhado for o documento, menos chances de ocorrerem problemas no futuro. O protocolo não é um documento imutável. Famílias inovadoras atualizam seus protocolos ao longo dos anos.

5 – Planeje a transferência de patrimônio 

É essencial antecipar-se aos problemas e começar a pensar na divisão do patrimônio ainda na presença dos proprietários. A realização de testamentos ou doações em vida, normalmente combinadas com os instrumentos societários, são as ferramentas mais comuns para evitar dores de cabeça no futuro.

6 – Faça escolhas 

A tarefa pode ser difícil, mas é importante que os proprietários pavimentem o caminho para que um herdeiro possa assumir os negócios. Boa parte dos conflitos está atrelada à disputa por poder na gestão dos negócios familiares e não necessariamente à divisão dos bens. Ao ajudar na legitimação de um líder, o proprietário desestimula a rivalidade entre irmãos.

7 – Pesquise 

Antes de começar o processo, pesquise as melhores opções e escolha profissionais capacitados para auxiliá-lo a compor uma transição tranquila e eficiente.

8 – Eduque seus herdeiros 

Prepare seus filhos desde cedo para que entendam a natureza do seu negócio. Explique processos e faça com que conheçam as diferentes áreas de atuação da propriedade. Facilite o caminho dos herdeiros e sucessores com treinamentos e algum tempo de gestão compartilhada. Algumas propriedades utilizam programas de formação de herdeiros e acionistas de forma a apresentar grandes números e preparar gestores que vão participar no negócio, mas não necessariamente tocar o dia a dia, a nutrir relacionamentos que lhes permitam administrar o todo. Se tiver mais de um filho, desenvolva neles a capacidade de ver o irmão como sócio. Geralmente, eles podem passar a vida se conhecendo como irmãos, mas não exercitam a capacidade de interagir como sócios ou como chefe e subordinado.

Fonte: Associação Brasileira de Angus

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