A música e a trajetória do missioneiro Noel Guarany
Em cada cidade missioneira, no Noroeste do Rio Grande do Sul, não há quem não tenha um causo para contar sobre Noel Guarany, falecido em 1998 aos 57 anos. Baita violeiro, uma voz em defesa dos mais pobres, dizem todos, tinha o sangue quente, era franco e rude no trato social. Além da faca na guaiaca, carregava um revólver 38 e tinha um jeito temerário de afrontar as pessoas. Ok, nunca esfaqueou ou baleou alguém, mas sabia ferir com a língua afiada.Uma noite num bar de São Borja, onde lanchava com um colega após um show, ficou irritado quando se meteu na conversa – sobre música – um sujeito grandalhão que nitidamente não dominava o assunto. Sem se levantar da cadeira, o franzino Noel só disse: “Tu não tem nada que te meter na conversa dos outros – ainda mais tu que não sabe nem assobiar!”. O intrometido sentiu o golpe e quis brigar. Mas não faltaram os “amadrinhadores” com seus refrões de paz.Foram muitos os episódios em que a petulância de Noel precisou de contenção. O banrisulino José Ordonez Antunes Ribeiro, que hoje vive aposentado em Capão da Canoa, apartou duas brigas dele, uma dentro do restaurante Casarão, em São Luiz Gonzaga. De outra vez, num bar lotado de Santa Maria, Noel se incomodou com algo e pôs à vista seu Smith&Wesson niquelado. Alertado, o dono da casa puxou um dos acompanhantes do artista e pediu: “Pelo amor de Deus, desarme esse homem antes que aconteça uma tragédia!” Seria o caso de chamar a polícia?! Ou desafiar para um duelo? Beto São Pedro, amigo de Noel, o convidou para irem ao banheiro. Lá, com jeito, pediu o revólver. Surpreendentemente, ele aquiesceu.Só amigos e parentes sabiam que “Noel tinha lado de montar”. Parece que o carinho o desarmava. Uma noite em que animava uma de tantas tertúlias na casa da prima Tunica Pereira, em São Luiz, ele parou de tocar e disse que só continuaria se todos parassem de fazer barulho. A parenta (que o ajudava nos apertos e também era despachadona) respondeu na hora: “Se eu quisesse escutar Noel em silêncio, pegava um disco dele…”. O cantor sorriu e retomou a sessão que atraía velhos e crianças da vizinhança.Em meados da década de 1970, sua fama extrapolava as Missões, de onde sumira em 1960, após desertar do quartel do 3º RC, onde prestava o serviço militar. Para não pegar cadeia por insubmissão, se bandeou para a Argentina, de onde voltou sete anos depois, notoriamente amadurecido como músico e cantor, mas ainda predisposto a fazer como na música de Teixeirinha: “…se alguém me pisar no pala/ meu revorve fala/ e o bochincho está feito”.Talvez em homenagem ao seu pai, João Maria Fabricio da Silva, que trabalhou como barbeiro (civil) no quartel de São Luiz, o ex-desertor foi declarado incapaz (de servir ao Exército, claro). Em uma de suas canções, Noel afirmou que o amor à pátria é a maior virtude de um latino-americano – começava a aparecer o nacionalismo que o fizera adotar o apelido Guarany, molde definitivo de sua imagem artística e política.Com ‘pátria’ ele queria dizer ‘terra’, um entendimento nascido de suas andanças pelos países vizinhos. Como largou a escola no terceiro ano, não se aprimorou na escrita, mas aprendeu sozinho a articular-se nos dois idiomas falados na América Latina. Numa de suas primeiras gravações após voltar a São Luiz, mandou ver: “Total, por ser guitarreiro/ aprendi barbaridade/ Cantador, sou perigoso”. Bem ou mal, toda sua obra musical refletiu seu modo radical de ser. Um radialista que conviveu com ele concluiu: “Noel tinha dois dentro dele, um brigando com o outro: queria ser respeitado mas ficava puto por ser bajulado”.Seu primeiro sucesso foi o Romance do Pala Velho, milonga sentimental em que pede: devolvam o pala que sumiu na noite que passou “na maldita perdição”.O músico agora é tema do documentário Minhas Andanças (imagem no alto) dirigido por Tiago Rodrigues e inspirado em dissertação de mestrado de David Cunha – a estreia será em 2021.
Romance do Pala Velho
Uma vez fui na cidadeNa maldita perdiçãoLá perdi meu pala veioQue me doeu no coraçãoQuando voltei da cidadeVinha com dor na cabeçaCheguei fazendo promessaDeus permita que apareçaEncontrei xiru do postoE não deixei de maliciarQue ele achou meu pala veioE não queria me entregarFui dar parte ao comissárioFicou pra segunda-feiraMe levaram na conversaE se foi a semana inteiraVeja as coisas como sãoComo se forma a lambançaQue pelo mal dos pecadosEra o forro das criançasCom este meu pala rasgadoPassava campos e riosCom este meu palinha veioNão temo chuva e nem frioInformem nas vizinhançasEste triste sucedidoQuem tiver meu pala velhoQue prendam este bandidoNeste mundo todos morremDa morte ninguém atalhaMe entreguem meu pala velhoPara mim levar de mortalha.
Índio no nome e na alma
Caçula de uma família de cinco irmãos – Tarzan (que morreu cedo), Basilio, Ernestina e Bárbara (a única sobrevivente, reside em Porto Alegre), Noel Fabricio da Silva foi criado em São Luiz, a terra natal do pai; a mãe, Antonina Borges do Canto, era de São Nicolau, a mais antiga (1626) redução guarani fundada pelos jesuítas espanhóis; seu sobrenome vinha de um soldado festejado como conquistador das Missões em 1801.Autodidata, Noel era piá quando aprendeu a tocar gaita, mas aos 15 anos optou pelo violão, no qual desenvolveu o pendor musical. Na sua vida teatina do outro lado do rio Uruguai, trabalhou como peão, balseiro, lenhador e coletor de erva-mate, atividades que lhe deram um real conhecimento da cultura popular dos países por onde andou – além da Argentina, o Paraguai e a Bolívia. Em alguns momentos, também vagou pelo Mato Grosso e o Rio Grande do Sul.
Caricatura publicada em 1976 no jornal Versus, que fez um perfil do músico. Acervo Pessoal
Quando voltou de sua longa aventura fora-da-lei, em 1967, morou por um tempo em Cerro Largo, onde fez um programa de rádio. Já era conhecido não só por tocar em praças e galpões, mas por ter participado de eventos na Argentina, entre eles o famoso Festival de Folclore de Cosquín, na província de Córdoba. Instituído em 1961, esse festival serviu de inspiração para a Califórnia da Canção Nativa, marco da história da música regional fixado em 1971 em Uruguaiana.Na pioneira edição desse festival nativista, consta que Noel ciceroneou o músico argentino Chaloy Jara (1940-2011), que faria praça no Rio Grande como grande tocador de bandoneon. Jara foi o primeiro de uma lista refugiados que incluiu grandes nomes como Luiz Yanel, Dante Ledesma, Talo Pereyra e Martin Coplas, que musicou a Missa da Terra Sem Males, cujos textos foram escritos por Pedro Tierra e o bispo católico D. Pedro Casaldáliga, inspirados na célebre Misa Criolla dos argentinos Ariel Ramirez e Felix Luna.Recém-entrado nos 30 anos, Noel casou em fevereiro 1972 com a sanluizense Neidi Machado da Silva, 10 anos mais jovem. De um namoro antigo, ele já tinha uma filha, Andréa, que vive hoje em Santa Rosa. De início, o casal morou em São Luiz, mudando logo para Porto Alegre e, a seguir, para Santa Rosa, Passo Fundo e Itaqui, último pouso antes da transferência final para Santa Maria, em 1984. Segundo Neidi, a maior parte das mudanças de domicílio da família foi determinada pelo trabalho dela, como funcionária concursada da estatal CRT, pela qual se aposentou como gerente administrativa durante a privatização da companhia, em 1998.Em cidades missioneiras e na Capital, Noel é lembrado como um sujeito “genial e genioso” que vivia muito fora de casa em função dos altos e baixos de sua carreira incomparavelmente agitada. Mesmo sendo um farrista inveterado, viveu mais do dobro do que o outro Noel, o Rosa, genial sambista carioca que se foi aos 27 anos, abatido pela tuberculose.Nascido no pós-Natal de 1941, o missioneiro morreu de ataxia cerebral, doença degenerativa que lhe roubou a memória e a mobilidade – um suplício para um andarilho atávico. Passou os últimos anos rodeado pela esposa e as três filhas – Lia, a primeira, é funcionária pública municipal; Linda é técnica em radiologia e mamografia; a caçula Laura, formada em canto, adotou o apelido paterno para tentar a carreira artística mas, isolada pela pandemia, dedica-se a vender camisetas com versos do pai.
Noel Guarany foi chamado de Atahualpa Yupanqui brasileiro
O jornal esquerdista Versus, lançado em outubro de 1975, adotou Noel Guarany como o espelho brasileiro do argentino Atahualpa Yupanqui (1908-1992). E bem que o missioneiro rio-grandense gostou da comparação. Mais de uma vez ele atendeu a convites para se apresentar (sem cachê) em São Paulo, sede do mensário criado pelo jornalista Marcos Faermann (1943-1999), gaúcho de Rio Pardo.O primeiro foi um show para arrecadar fundos no primeiro aniversário do jornal, que tirava 25 mil exemplares por mês. Noel cantou no auditório da Fundação Getulio Vargas, ao lado de Gonzaguinha, Dércio Marques, Tarancón e outros. Na edição especial daquele mês, Versus publicou, sob o título O trovador maldito, um perfil do “guasca de modos bruscos e respostas desaforadas”. O texto do repórter gaúcho Carlos Alberto Kolecsa abriu aspas para o folclorista Barbosa Lessa (autor do clássico “Homens de Preto”), que dera as boas-vindas a Noel Guarany por trazer à luz, surpreendentemente, “a cantiga de galpão, a meio caminho entre a narrativa declamada e o canto propriamente”.A matéria de Kolecsa apresentou Noel como “um elo perdido” entre o gaúcho primitivo e o moderno: “Desde que a sanfona, há um século, matou a viola, também se supunha o violeiro um espécime extinto, uma garganta engasgada antes de passar adiante o seu tesouro. No fechado clube masculino do galpão de estância, em volta do fogo, o violeiro era, sem saber, o cofre vivo da cultura camponesa. Juntava os causos que sabia e os que lhe contavam nas rodas de caña, e da mistura das desgraças e alegrias afinadas pela própria sensibilidade e talento tirava as canções. A pequena plateia privilegiada ouvia, aprovava ou reprovava”.O repórter compara as reduções jesuíticas a um “internato de insubmissos, em que (…) não se pergunta ao migrante por que atravessou sorrateiramente o rio”. Esses lugares cheio de plantações, rebanhos e povoados com nome de santo foram “o meio ideal para um jovem desertor, solto na vida desde os 14 anos, guapo, capaz de montar tão bem quanto de guiar o caíque carregado de cachaça até a trilha do contrabando”. Pronto, estava feito um dos melhores retratos do transgressor, galo de rinha com “dois processos por agressão”.Aos 34 anos, o trovador maldito estava no quarto disco, gravado em Buenos Aires em dupla com o pajador Jayme Caetano Braun. Na entrevista ao jornal, Noel se queixou de ser discriminado: “Em carta meio jocosa, a Ordem dos Músicos do Brasil informou que não sabia que eu era músico. Qualquer filho de estancieiro pode tirar carteira de músico, eu não. Ora, vão pros infernos com os regulamentos.” Ele se sentia vítima de preconceitos arraigados: “No Brasil não basta ser artista. Tem que ser artista extraordinário, ser mais forte que todas as consequências de viver num país subdesenvolvido”. E explicou onde buscava forças para levar adiante seu trabalho: “Quando eu gravo, gravo para quem conheço e não conheço. Vou atuar e atuo, uma questão de consciência profissional. No meu jeito de índio grosso, vou fazendo um trabalho didático, de marketing, em que não me importo com o dinheiro, com nada”.No final do depoimento, ele elogiou os ribeirinhos da fronteira Brasil-Argentina: “Fui balseiro. Sei o que sente aquela gente que vive em volta do rio. Os navegadores do Uruguai vivem de histórias, de inspiração. Olham uma pedra no meio do rio e falam: Ali tem uma força maior na água, o que será que não tem embaixo… Olham um angico meio deitado na ribanceira e identificam nele as histórias da infância, de pescarias, de contrabando. Vivem da natureza e se guiam por ela. Antes de lavarem a cara vão ver se o rio está no mesmo lugar, o que mudou durante a noite, tentam adivinhar o bom e o ruim que vai acontecer durante o dia.”
O parceiraço de Itaqui
Segundo a viúva Neidi Fabricio da Silva, o maior dos amigos de Noel foi João Sampaio, poeta de Itaqui, seu parceiro em várias canções. Dono de “um campinho” no vale do Ibicuí, João conheceu o artista após ouvir no rádio a música Gaudério, gravada em 1970 por Noel com base em poema do médico tupanciretano Aureliano de Figueiredo Pinto (1898-1959), que viveu em Santiago. Mesmo sabendo que o cantor era coiceiro, Sampaio lhe mostrou uma letra sobre Gumercindo Saraiva. Foi em 1976, os dois estavam na Expointer, onde Noel se apresentou ao lado de um harpista paraguaio. Noel leu, ficou pensando e depois falou: “Acho que podemos começar uma parceria”.Das 87 canções gravadas por Noel em uma dezena de discos, 13 foram escritas por João Sampaio, que largou o curso pré-universitário em Porto Alegre – foi aluno do professor José Fogaça – para se dedicar à pesquisa sobre as origens do tipo gaúcho. Vem daí sua admiração pelo parceiro. “Noel colocou a musicalidade índia na cultura do Rio Grande”, diz, lembrando o quanto ele emocionava as pessoas ao cantar Índia e outras canções de raiz guarani. Isso nos primórdios da carreira.Com o tempo, afirma Sampaio, Noel aprofundou seus estudos e abriu uma picada que atraiu músicos de outras áreas. Cenair Maicá, por exemplo, começou como tradicionalista; Pedro Ortaça foi parte da dupla sertaneja Canario & Canarinho. Juntos ao lado do pajador Jayme Caetano Braun, os três desenvolveram a mescla identificada como “música missioneira” – muito falada e pouco estudada. “Sem nunca sair do trilho”, como disse numa canção, Noel correu em faixa própria da música regional gaúcha.
Shows no circuito universitário e rádio em Santa Maria
Como o parceiro Jayme Caetano Braun (1924-1999), Noel Guarany foi um trabalhista sempre pronto a colocar violão e voz “a serviço das liberdades democráticas”. Sem cachê, apresentava-se em comícios de candidatos amigos ou afinados politicamente com ele. Enquanto o festejado pajador frequentava salões da cultura tradicionalista, Noel tinha aversão a tudo que cheirasse a CTG. Teimoso, não se dispôs a participar de festivais de música que se tornaram uma grande fonte de trabalho artístico a partir do movimento nativista desencadeado pela Califórnia de Uruguaiana. Em certo momento, se declarou envergonhado da indumentária “espalhafatosa” dos gaúchos de CTG.Ao fechar assim quase todas as porteiras para seu trabalho, Noel não recusava convites de dirigentes estudantis nos anos 1970. “Os estudantes o adoravam”, lembra o historiador Luiz Carlos Tau Golin. Admiravam sua franqueza, vendo na sua boina surrada uma ligação direta com Che Guevara – um dos seus ídolos, ao lado de Sepé Tiaraju, Tiradentes e Simon Bolivar.
No jornal A Razão, Santa Maria, Noel (de boina) ao lado de Tau Golin, que reuniu acervo e ajudou na gravação de discos. ACERVO TAU GOLIN/DIVULGAÇÃO/JC
Jornalista que virou professor de História, Tau Golin conheceu Noel no início dos anos 1970, quando fazia parte de um grupo de estudantes que se reunia para beber, churrasquear e ouvir música em Santa Maria. Dessas tertúlias participava também o cantor Cenair Maicá, parceiro de Noel em aventuras musicais pelo interior do Rio Grande e além fronteiras.Estudante e radialista, Golin usava fitas de rolo para gravar shows em Santa Maria e em outras cidades. Apresentava o material colhido no programa Continente Latino-Americano, que começou na Rádio Santa-Mariense e, depois, ficou no ar por quase 10 anos na potente Imembuí aos domingos das 12h às 14h. Já no programa Boca do Monte, diário, o apresentador dava ênfase à produção musical dos missioneiros liderados por Noel, Maicá e Pedro Ortaça, os três cantores considerados “troncos missioneiros” ao lado do pajador Jayme Caetano Braun.Graças a essas reportagens, Golin reuniu um acervo que lhe permitiu ajudar na gravação de diversos discos. Do show de Noel em 8 de junho de 1982 no Centro de Atividades Múltiplas de Santa Maria, saíram as canções do CD póstumo Noel Guarany – Destino Missioneiro (2003), lançado junto com o livro de igual título, editado pelo radialista e ex-editor da revista Nativismo (que circulou nos anos 1980) Chico Sosa, que se baseou em anotações feitas pelo próprio cantor.Além dos missioneiros, o arquivo de Golin contém diversos shows d’Os Tapes, conjunto instrumental-vocal gravado em 1974 por Marcus Pereira, produtor paulista que fez um pioneiro mapeamento discográfico da música regional brasileira.Hoje professor na Universidade de Passo Fundo, Golin lembra que muitos shows de Noel foram promovidos por estudantes universitários engajados na luta pela redemocratização. Com o sucesso em shows e no rádio, o cantador era convidado a se apresentar pela bilheteria em tertúlias para algumas dezenas ou por cachê em eventos para multidões. Sempre o mesmo: ficava fulo se o público não prestasse atenção.Numa festa agropecuária em Julio de Castilhos, parou de tocar quando dezenas de pares começaram um arrasta-pé longe do palco. Sem música, a dança parou. Ao voltar a tocar, Noel embraveceu ao ver o povo querendo baile. “Não canto para gente mal educada”, bradou. Em resposta, alguns espectadores jogaram cadeiras sobre o palco. Noel teve de sair do parque escondido numa Kombi.Por trás desse episódio, revelou-se uma contradição anotada por Tau Golin: o público de Noel era o mesmo dos artistas tradicionalistas.Numa de suas andanças, Noel Guarany sofreu um corte profundo no dedo indicador da mão esquerda, o mais importante no dedilhar das cordas do violão. Estava picando carne para um arroz de carreteiro em casa de amigos, justificou.O acidente o manteve sem tocar por longo tempo. Como consolo, foi convidado a fazer um programa musical na rádio da universidade de Santa Maria. Como não possuía discos, abastecia-se na discoteca particular de Tau Golin, que intercambiava material cultural com estudantes latino-americanos conveniados com a UFSM.Quando voltou a tocar, Noel não era o mesmo violeiro de antes, aquele que punha as plateias numa espécie de transe místico. Foi uma perda sentida especialmente por ele.Por essas e outras ocorrências, na década de 1980, Noel se deu conta de que a fama não lhe trouxera fortuna. Quem garantia a estabilidade financeira da família era o salário da esposa. E assim ele foi se isolando até adoecer. Os sintomas apareceram no final dos anos 1980. Começou a esquecer as letras. Se tocar violão era penoso, o cantar nem sempre fluía como antes. Na primeira metade dos anos 1990, quando ele estava totalmente parado, amigos de Santa Maria organizaram um show em seu benefício.
A estátua em Bossoroca
Embora tenha nascido pelas mãos de parteira doméstica em São Luiz Gonzaga, Noel se declarou natural de Bossoroca, o ex-distrito “onde galinha não canta e tatu não sai da toca”, como disse numa de suas canções de rimas bizarras.Município desde 1965, Bossoroca possui uma confraria (Icamaquã, em homenagem a um rio regional) que liderou a arrecadação de recursos para a construção de uma estátua do cantor, obra de 4,50 metros de altura executada pelo escultor Vinicius Ribeiro, especialista em grandes imagens de concreto.O monumento foi inaugurado em 2015 a cerca de 500 metros do túmulo, bastante visitado, até porque fica na entrada da cidade.Numa das últimas vezes em que esteve lá, João Sampaio lavrou um soneto cujos tercetos terminam assim: “Desde o dia da tua morte/ Sopra um negro vento norte/ Querido Noel Guarany/ O povo visita a tua campa/ E até os quero-queros da pampa/ Sentem saudades de ti…”.Segundo Ribeiro, que mantém um blog muito bem-humorado, Noel Guarany assumiu Bossoroca como terra natal após indispor-se com pessoas de São Luiz Gonzaga que o desqualificavam como “incapaz” de gravar um disco.Ao trocar a cidade-mãe pelo antigo distrito, Noel fez o contrário de Teixeirinha, que ficou famoso como “gaúcho de Passo Fundo,” embora tivesse nascido em Mascarada, distrito de Rolante.Hoje os direitos autorais das 700 músicas, discos e filmes de Teixeirinha fluem para a Fundação Vitor Mateus Teixeira, criada pela advogada Elisabeth Teixeira, filha do artista. Já a herança artística de Noel Guarany rende pouco para suas herdeiras.”Para render, as músicas teriam de estar tocando”, conforma-se a viúva do artista.
Fonte: Jornal do Comércio