Reflexão – Consciência Negra
“Sou a palavra cacimba/ pra sede de todo mundo/ e tenho assim minha alma:/ água limpa e céu no fundo.
Já fui remo, fui enxada/ e pedra de construção;/ trilho de estrada-de-ferro,/ lavoura, semente, grão.
Já fui a palavra canga,/ sou hoje a palavra basta./ E vou refugando a manga/ num atropelo de aspa.
Meu canto é faca de charque/ voltada contra o feitor,/ dizendo que minha carne/ não é de nenhum senhor.
Sou o samba das escolas/ em todos os carnavais./ Sou o samba da cidade/ e lá dos confins rurais.
Sou quicumbi e Moçambique/ no compasso do tambor./ Sou um toque de batuque/ em casa gege-nagô.
Sou a bombacha de santo,/ sou o churrasco de Ogum./ Entre os filhos desta terra/ naturalmente sou um.
Sou o trabalho e a luta,/ suor e sangue de quem/ nas entranhas desta terra/ nutre raízes também.”
(Sou – Oliveira Silveira)
Estamos na Semana da Consciência Negra!
Sempre é tempo de Consciência Negra!
Sempre é dia, semana, mês, ano, tempo de luta por reconhecimento, de luta contra a desigualdade, de luta contra o racismo. Sempre é tempo de lutas pela questão que une todas as lutas: o direito de “ser”.
O “ser” que se concretiza em nomes, rostos, vozes, histórias… vidas. Vidas negras!
Por isso, nosso texto se coloca sob o poema chamado “Sou”, da autoria de Oliveira Silveira, uma das vidas negras que nos falam a partir da história.
Idealizador do Dia da Consciência Negra, nascido no Touro Passo, em Rosário do Sul, no ano de 1941, Oliveira Ferreira da Silveira era formado em Letras e foi professor em Porto Alegre por muitos anos. Na década de 70 fundou, junto a outros amigos e colegas, o Grupo Palmares. A partir deste grupo, Oliveira fomentou por todo o Brasil a ideia de estabelecer a data em que Zumbi dos Palmares foi assassinado como Dia da Consciência Negra.
Este movimento ganhou o Brasil e hoje aqui estamos, celebrando não apenas o dia, mas a Semana da Consciência Negra.
O negro “é”!
No fundo do racismo e de todo tipo de preconceito e violência se encontra exatamente a proibição de “ser”. O ódio começa na indiferença.
O ódio começa quando não admitimos que o outro “seja”.
O ódio começa quando aquele que era tomado por objeto se torna sujeito.
E quando o outro “é”, ele também revela o que “não somos”.
O poema de Oliveira Silveira, ao nos contar tudo que o negro “é” na história do Rio Grande do Sul, talvez nos revele que temos esqucido de alguns protagonistas de nossa história.
Estes esquecimentos tem raízes históricas e culturais na América Latina, no Brasil e no Rio Grande do Sul.
Inicialmente o negro aparece na literatura colonial latino-americana sendo comparado ao indígena pelo olhar do europeu colonizador. Este olhar busca equiparar negro e indígenas em termos de força de trabalho e eficiência, pois para o europeu colonizador, ambos eram apenas mão-de-obra comercializável. Isso começa a mudar a partir do Século XIX, quando o negro passa ser retratado na literatura como um integrante da sociedade que sofreu a escravidão. Trata-se da produção do Romance Anti-Escravista, produzido em muitos países latino-americanos. Neste momento, porém, esta produção literária que protesta contra a escravidão, é feita por brancos preocupados com a situação dos negros. O negro é alguém sobre que se fala, mas sua voz não é escutada. A partir do Século XX ocorre uma valorização da arte africana e suas manifestações no Novo Mundo, o que leva o negro a ser visto como integrante da cultura latino-americana. Isso, porém, ainda aborda a questão negra como algo exótico, não passando de um modismo na Europa. Mudanças mais substanciais ocorrem quando surge o movimento do negrismo, na região do Caribe Hispânico. Este movimento inicia um processo de descolonização cultural a partir da qual o negro fala e questiona a estrutura que o escraviza. A partir da década de 90 a visão sobre o negro passa a expressar não mais uma única identidade negra, mas várias identidades em negociação, integradas e ao mesmo tempo únicas no contexto latino-americano.
No Brasil a visão historicamente construida sobre o negro não é tão diferente.
Na literatura brasileira, por muito tempo, o negro também é alguém sobre quem se fala, mas que raramente tem voz. A poesia de abolicionistas como Castro Alves, por exemplo, fala sobre o sofrimento do negro na escravidão, mas não expressa a voz do próprio negro falando sobre este sofrer. Mesmo após a abolição, quando o protesto contra a escravidão se transmuta em protesto contra o preconceito, continua-se a falar sobre o negro, mas o negro não é escutado. É a partir da década de 60 que veremos surgir no Brasil uma abordagem do negro pelo negro de maneira mais contundente. Em meio aos preconceitos que sofre, o negro canta sua cultura, seus símbolos e sua rebeldia contra o preconceito e o não-reconhecimento de sua identidade. Inicia-se, assim, um itinerário da saga negra no Brasil, que narra a história do país pelo ponto de vista de quem foi silenciado, objetificado e massacrado pela escravidão e pelo racismo.
A partir destas produções e de estudos semelhantes em outras áreas do saber que vamos tomando contato com a história destes homens e mulheres, arrancados de sua terra, forçados a atravessar o oceano e vendidos como escravos em nosso país.
As primeiras pessoas escravizadas do continente africano vieram para o Brasil entre 1531 e 1550. O maior número de pessoas, porém, chegou na segunda metade do século XVI, devido à produção de açúcar. Inicialmente, boa parte da população negra vinda para o Brasil se concentra na região Nordeste, principalmente em Pernambuco, onde se encontravam os grandes latifúndios açucareiros. A travessia do continente africano para o Brasil se dava em condições desumanas, a bordo dos navios negreiros. Muitas pessoas não sobreviviam a viagem e eram jogadas em alto-mar, uma vez que cadáveres não tinham valor para os mercadores de escravos.
O Atlântico é um grande cemitério negro.
Na chegada à propriedade de quem os havia comprado, as pessoas escravizadas eram acomodadas em senzalas – que era o nome dados aos alojamentos mantidos para acomodar os escravos, nas dependências da fazenda ou da propriedade senhorial.
Nas senzalas estas pessoas dormiam no chão ou sobre folhas, muitas vezes acorrentadas para não fugirem durante a noite. Trabalhavam de 14 a 18 horas e sofriam cruéis castigos pela menor das falhas.
Perto dali, a casa-grande, residência do senhorio, acolhia escravos e escravas para serviços domésticos.
Para trabalhar neste lugar eram selecionados os mais fortes e bonitos.
Neste lugar se criaram papéis como as mucamas e as amas-de-leite e também nasceu boa parte da culinária e da língua comumente falada no Brasil.
Essa realidade também se fez presente aqui no Rio Grande do Sul. Ao invés dos canaviais, porém, o drama negro se deu nas charqueadas.
O trabalho nas charqueadas, ao longo de muito tempo, foi feito basicamente por mão-de-obra escrava.
Era um trabalho pesado e degradante num ambiente altamente insalubre: além da rudeza do trabalho e do tratamento que recebiam, havia um mau cheiro continuamente reinante, muita sujeira e a presença de animais peçonhentos e pestilentos no espaço de trabalho.
Tudo isso era emoldurado no quadro macabro do abate numeroso de gado.
Para as charqueadas, aqui no sul, eram enviadas pessoas originárias de Moçambique e Angola. Eram escolhidas aquelas que eram consideradas rebeldes demais para permanecer e trabalhar nas propriedades do Nordeste. O envio para as charqueadas eram um castigo para esses rebeldes. Por isso, as charqueadas eram conhecidas como “Purgatório dos Negros”. Enquanto a média de vida negra era de 30 ou 35 anos em outros lugares do Brasil, a média de vida daqueles que eram enviados para as charqueadas diminuía em 4 ou 5 anos, de tão insalubre que era esse trabalho.
Mas não eram apenas as charqueadas que matavam a população negra do Rio Grande do Sul.
E aqui nós chegamos ao que Esta parece ser a encruzilhada da história do negro no Rio Grande do Sul: Porongos.
Em 14 de novembro de 1844, na localidade de Pinheiro Machado, ocorreu uma das últimas batalhas da Revolução Farroupilha.
Uma batalha que se torna uma ferida não cicatrizada em nossa história e em nossa memória: desarmados antecipadamente pelos próprios oficiais farrapos, cerca de 100 Lanceiros Negros foram abandonados no campo de batalha e massacrados pelas forças imperiais.
Estes soldados, juntados às fileiras dos farrapos compulsoriamente e com a promessa de abolição da escravatura por parte dos farroupilhas, perfaziam um terço ou mais das tropas farrapas. Eram os bravos Lanceiros Negros, a mais temida força militar farroupilha.
Se hoje falamos, cantamos e declamamos que os farroupilhas lutavam pela liberdade, nunca podemos esquecer que estes homens também o faziam, mas lutavam por uma liberdade diferente: a liberdade de não ter grilhões, de não pertencer a nenhum senhor, de ser livre e respeitado como pessoa.
Batalhas bem diferentes travadas lado a lado.
Quem eram esses lanceiros?
Quais eram seus nomes?
Quem estava aguardando por sua volta?
Por que nossa memória sobre eles é cheia de esquecimentos?
Será que percebemos como nossos discursos a respeito da população gaúcha se referem ao espanhol, ao açoriano, ao indígena e aos outros povos que migraram para cá, pouco ou nada se referindo à população negra do estado e sobre sua história no Rio Grande do Sul?
Aliás, é muito comum se comparar o Rio Grande do Sul à Europa, principalmente no que se refere à etnia dos habitantes do estado. É bom lembrarmos, por isso, que além das charqueadas, os negros escravizados também eram utilizados como mão de obra nas estâncias: eles montavam e domavam cavalos e trabalhavam em todas as lidas campeiras, impulsionando enormemente a economia agropecuária. Segundo o site Geledes, “estima-se que o Rio Grande do Sul tinha 70.000 habitantes em 1814, desses, 37% eram negros. Em Rio Grande,por exemplo, a porcentagem de negros pro mesmo período é de 35%. Mas os números realmente impressionantes são os de Pelotas. Calcula-se que em 1833, Pelotas tinha 51% da sua população composta por escravos.”
E assim nós chegamos nos Quilombos.
O que é um Quilombo? Comumente aprendemos a pensar no Quilombo como um “esconderijo” de escravos fugitivos. Na verdade, o Quilombo é uma nação, um estado, com governo próprio e com pessoas livres.
Por isso, quando celebramos a memória de Zumbi e por consequência do Quilombo dos Palmares, que talvez seja o mais conhecido de nossa história, estamos celebrando a fundação de uma nação negra em pleno território brasileiro. Uma nação onde o negro não é mais escravo: é cidadão.
O quilombola, por isso, representa a reconquista da dignidade negra.
No Quilombo, o negro não é mais um “oprimido”, mas o sujeito de sua história.
É a partir do Quilombo, real ou imaginário, que o negro se estabelece como sujeito em nossa sociedade. Atualmente, segundo o Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, o estado conta com 146 comunidades quilombolas.
Neste quadro todo, não podemos excluir aquele que, sem dúvida, é o elemento central da cultura negra: sua mística e religiosidade.
Os povos que vieram para cá trouxeram com eles os Orixás e toda a força ancestral do continente africano.
Na situação de escravidão em que se encontravam, estes povos estavam proibidos de viver a própria cultura. Eram “batizados”, ganhavam novos nomes, aprendiam a prestar culto aos santos católicos. E foi exatamente aí que estas comunidades viraram o jogo.
Recusando-se a perder a identidade e não conseguindo inicialmente enfrentar o poderio de quem os escravizava, iniciaram uma resistência cifrada.
Rezavam para Nossa Senhora dos Navegantes, mas estavam cultuando Iemanjá.
Se prostravam diante da imagem de Cristo, enquanto estavam reverenciando Ogum.
Criava-se, assim, um sincretismo único no mundo inteiro, que nos legou uma fonte de compreensão da própria vida.
Herdamos dos povos vindos da África a intuição de que o sagrado se manifesta no corpo.
Por isso dançamos e celebramos a vida.
Que a Semana da Consciência Negra seja um convite para que todos dancemos no terreiro do universo.
Que nossa dança expulse da roda qualquer forma de racismo, preconceito e violência.
Que a dança seja vida! Que a vida seja negra!
Vidas negras importam!