Reflexão – O Fogo
Se existe um elemento natural verdadeiramente indomável, este elemento é o fogo.
Perigoso, com grande potencial destrutivo, o fogo é o elemento mais transformador da natureza e seu domínio por parte do ser humano mudou a humanidade para sempre.
Utilizado inicialmente para fazer fogueiras e iluminar a noite, trazendo maior proteção contra os predadores e, na sequência, para assar e cozinhar alimentos, pode-se afirmar que a humanidade era de um jeito antes do fogo e de outro jeito depois. Essa questão marca tão fortemente nossa história que o fogo se torna um símbolo para diferentes culturas, em todos os tempos.
Na Roma antiga, por exemplo, havia o culto doméstico aos deuses que eram chamados de lares e o sinal de devoção a esses deuses era uma pira que ficava permanentemente acesa dentro de casa: a lareira. Manter a lareira acesa era uma obrigação que passava de geração a geração e dela dependia a honra daquela família.
Será que nosso fogo grande, nossos fogões, nosso fogo de chão, nossa chama crioula, não guardam pouco disso consigo?
O fogo está presente na história de toda humanidade, e cada cultura o interpreta de um jeito próprio.
Nestas paragens do sul, se enxerga de longe o fogo de chão.
O fogão campeiro aquece permanentemente a água e acolhe o andarilho com um mate novo e uma carne assada, revigorando suas forças, convidando-o para partilhar a vida e animando-o para continuar a caminhada.
O fogo, na vida do gaúcho, é o espelho e o espírito que lhe mostra o passado e o desafia para o futuro, enchendo seus olhos de água. O fogo às vezes é aquele com quem o gaúcho conversa: o fogo fala, o fogo cala e seu calor abraça quem está por perto. Quando se extingue, fica um fogo morto, que são as cinzas que sobram daquilo que foi queimado.
A sabedoria popular ensina que não se deve reavivar o fogo morto, pois ele pode atrair alguma desgraça. É preciso acender um fogo novo, renovar a vida. Por outro lado, existe uma forte simbologia que fala das brasas dormidas, ocultas por debaixo das cinzas. Historicamente se utilizou essa metáfora diversas vezes para falar da retomada de lutas e causas que já se davam por perdidas. Nessas ocasiões sempre se diz que basta uma brasa acesa para o fogo vir de novo.
Se não há brasa, por outro lado, pode se acender uma vela, conforme aprendemos na lenda do Negrinho do Pastoreio.
Nesta narrativa o fogo está presente para iluminar o caminho do Negrinho, que procura, por exemplo, pelo baio desaparecido do patrão. O Negrinho do Pastoreio é uma narrativa simbólica sobre a crueldade da escravidão que aconteceu aqui no sul. O destino do Negrinho, que não ganha nome nessa lenda, é ser devorado vivo por formigas, por puro capricho do homem que o tinha como propriedade. Mas há uma redenção para esse sofrido negrinho através de Nossa Senhora, madrinha dos sem nome, com sua luz, mais forte que a de todas as velas. O negrinho é aquele que encontra o que se perdeu, bastando lhe oferecer a chama de uma vela. Na piedade popular se pede ao negrinho que encontre diversas coisas, mas o que ele quer encontrar é sua dignidade, sua liberdade.
Mas, o mesmo fogo que acende a vela para o negrinho pode ser motivo de temor para quem habita este lugar do continente.
Uma das assombrações do campo mais conhecidas de nossa cultura, a M’Boitatá, também está relacionada ao fogo. A lenda conta de uma noite grande, que começou com uma chuvarada que alagou tudo. Os animais subiram as coxilhas para não se afogarem e lá ficaram, esperando passar a enchente. Mas a água não baixou e os animais começaram a morrer de fome. Nisso, a Boiguaçu, cobra-grande que teve sua toca inundada, saiu pelo campo para buscar comida. Encontrando as carniças, comia seus olhos. Os olhos, que guardavam a última luz do sol antes dele se pôr, começaram a brilhar dentro da cobra e ela se transformou numa cobra de fogo, a M’Boitatá. Com o tempo a cobra também morreu e a luz se desprendeu, fazendo o dia voltar. Mas conta-se que nas noites quentes, onde há carniça, a cobra volta a procurar novos olhos para comer. Como ela prefere olhos vivos, se alguém estiver passando por onde ela se manifestar, deve parar, fechar os olhos e ficar parado no mesmo lugar, para que a Cobra-luz não o veja e não devore seus olhos. Este mito gauchesco explica o fogo-fátuo, fenômeno natural que ocorre com os cadáveres dos animais. E se o fogo está presente neste e em outros mitos de nossa cultura, é porque ele se constitui em um elemento-chave para nossa visão de mundo.
Estas lendas e mitos não morrem com a chegada da tecnologia e do progresso.
Na medida em que novas tecnologias passam a fazer parte do cotidiano, também elas passam integrar nossa cosmovisão e podem também vir a ser traduzidas em forma de metáforas. A chegada da luz elétrica no campo, por exemplo, substitui o fogo em sua função de iluminar a noite e a escuridão em geral.
Ao mesmo tempo, porém, a adesão a novas tecnologias pode também levar a uma outra maneira de enxergar e se relacionar com a terra.
O mesmo fogo que melhorou a vida humana também pode ser utilizado para modificar a terra de formas bastante danosas.
A crise ambiental, que tem nas queimadas seu mais forte símbolo, constitui-se num problema que já vem de tempos, mas que ganha cada vez mais evidência. O fogo, utilizado para derrubar matas nativas, limpa o terreno para que cresça o pasto ou para o cultivo de monoculturas. Os indígenas já utilizavam essa técnica, mas em escala bem menor, de maneira muito equilibrada, para plantar suas roças. O problema é a proporção que as coisas acabaram tomando, com um crescimento das queimadas a ponto de desequilibrar o ambiente de forma drástica. Os efeitos são evidentes nas estiagens ou chuvas demasiadas, na força dos ventos, no desequilíbrio das estações.
Diante disso, precisamos nos perguntar de que forma se pode progredir sem agredir.
A sabedoria que nos liga à Terra e que nasce de nossa relação com ela precisa sempre estar presente em nossas decisões, seja qual for o tempo em que vivemos. Essa sabedoria que revela a nós o quanto a Terra e seus elementos são mistérios que merecem de nós toda reverência e que aquilo que se manifesta na terra, como o fogo, nos mostra realidades para além da terra.