Pedro Ortaça mantém viva a música missioneira
Entre as décadas de 1970 e 1980, São Luiz Gonzaga vivia uma efervescência cultural. A cidade retomava suas origens na história das Reduções Jesuíticas através da arte, da música e da poesia. Essa retomada não veio à toa. A intensa crise econômica mundial afetava a região e a autoestima dos moradores. Foi nesse cenário que os artistas construíram uma identidade que até hoje influencia a região.
O passado escolhido para ser retomado foi a segunda fase das Reduções Jesuítas, um movimento feito pelos padres mandados pela Companhia de Jesus para catequizar os índios. No século XVII, os jesuítas conseguiram a formação das reduções de São Francisco de Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio.
Mas para além da região brasileira, os Sete Povos das Missões pertenciam a um sistema maior, conhecido como República Guarani, que também compreendia locais na Argentina e no Paraguai. A organização de uma república sem classes, a luta dos índios em defesa da terra e os valores cristãos foram trazidos de 300 anos atrás para se construir uma identidade própria da região.
A reportagem cultural especial do Jornal do Comércio investigou a construção dessa identidade que tem como principal marco a música missioneira na imagem dos Quatro Troncos: Noel Guarany, Jayme Caetano Braun – conhecido como El Payador -, Cenair Maicá e Pedro Ortaça.
A denominação veio do disco Troncos Missioneiros, lançado em 1988, no auge da retomada cultural que os missioneiros viviam. O álbum, junto com a criação da Mostra de Arte Missioneira, impulsionou um movimento cultural que formou uma coletividade de artistas e uma educação musical que até hoje repercute na região.
Dos quatro troncos, hoje apenas Pedro Ortaça vive e continua tocando o estilo missioneiro, fazendo shows com os três filhos Marianita, Gabriel e Alberto. Com 78 anos, o artista busca a valorização cultural dos músicos da região. Ortaça e o deputado Paparico Bacchi (PL) protocolaram no final de julho o Projeto de Lei “Pedro Ortaça”, com o objetivo de tornar obrigatória a contratação de músicos e artistas na abertura de eventos musicais patrocinados ou financiados com recursos públicos.
A mistura de ritmos como milonga e chamamé, a forma de poesia improvisada chamada payada, letras que misturam português, espanhol e guarani e causos sobre as vivências nos países vizinhos são alguns elementos que constituem a musicalidade missioneira. Nas Missões, algumas famílias são constituídas em sua maioria por músicos, é comum reunir os amigos e familiares para tocar em datas festivas e as crianças são incentivadas na música desde cedo.
A cultura musical em São Luiz Gonzaga também pode ser vista pela quantidade de músicos que nasceram lá, como Noel, Pedro e Jayme e outros artistas conhecidos como Luiz Carlos Borges e Jorge Guedes. Com toda a popularidade e história, em 2012, o município foi instituído como Capital Estadual da Música Missioneira pela Assembleia Legislativa. A fama pegou e há quem diga que as crianças em São Luiz Gonzaga não nascem chorando, mas sim cantando.
Uma identidade construída
A construção de uma identidade e de um estilo missioneiro veio em um contexto de fragilidade econômica não apenas nas Missões, mas mundialmente. A crise do petróleo que ocorreu entre o fim dos anos 1970 até meados da década de 1980 afetou a economia de agricultura e a autoestima da comunidade que tinha esperança de crescimento.
Além disso, como conta a doutora em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Roselene Pommer, a questão política em São Luiz Gonzaga também era uma particularidade. “No final dos anos 1970, São Luiz foi uma das únicas a eleger um prefeito do Movimento Democrático Brasileiro indo no inverso de prefeitos da Arena na época do bipartidarismo. E foi esse prefeito que liderou as comemorações do centenário de emancipação da cidade, é essa festa que vai resultar a ideia das feiras culturais”, explica. A participação do poder público na comemoração da emancipação da cidade, em 1980, foi um modo de motivar os são-luizenses por meio de diversos eventos sobre a história reducional.
Antes disso, um jovem músico voltava à cidade com uma bagagem cultural depois de viver sete anos viajando e tocando na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Noel Fabrício da Silva, com o nome artístico Noel Guarany, já movimentava os músicos da cidade para o surgimento de um estilo missioneiro de tocar, que falasse sobre a realidade e as injustiças da região. O cantor não gostava dos festivais e concursos que ocorriam na época e se reuniu com outros artistas e intelectuais para a criação de uma feira que não buscasse a competição, mas sim a valorização das Missões.
Os três fatores entraram em uma panela de pressão que, ao explodir, sacudiu a cultura da região. O modo de cantar de Noel e a oposição à ditadura militar da cidade veio ao encontro de uma necessidade de retomar os valores da história reducional da região, trazendo elementos como a luta dos índios guaranis e a figura do Sepé Tiaraju.
Em 1981, foi realizada a Mostra de Arte Missioneira, um evento que reuniu artesãos, músicos, poetas e pesquisadores das Missões, integrando a Argentina e o Paraguai. De acordo com Roselene, esses fatores contribuíram para que a comunidade negociasse com o passado reducional e passasse a entendê-lo como parte da sua identidade. “Esse passado reducional era tido como um passado das ruínas que eram consideradas um monte de pedra e para muitos não tinha nenhuma significação. A partir do movimento das mostras que este passado vai ser ressignificado”, esclarece Pommer.
A identidade construída a partir da negociação com o passado reducional pode ser observada em diversos aspectos físicos ou subjetivos. Segundo o professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus São Borja, Muriel Pinto, a identidade missioneira é observada na herança cultural, religiosa, lendária e mística, não sendo apenas histórica, mas também simbólica por trazer vivências. Em sua pesquisa sobre a identidade Missioneira em São Borja, o professor encontrou na religiosidade e na música os traços mais marcantes da região. “Em São Borja nós temos as imagens sacras da época e também procissões que são feitas há mais de 100 anos. E a música missioneira se reproduz também no chamamé porque essa musicalidade vem do período missioneiro. O chamamé era uma mistura da musicalidade nativa com a espanhola, do flamenco, vem do folclore correntino”, aponta Pinto.
Uma música em homenagem à terra
Os músicos da região foram absorvendo essa herança, formando um estilo de cantar e tocar missioneiro. A principal diferença da música está nas letras que falam sobre a história das reduções, a valorização da terra e o Rio Uruguai, colocando os índios guaranis como protagonistas. Como explica o mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Iuri Daniel Barbosa, a música missioneira se conecta com os ideais da República Guarani. “Eles passaram muito mais na letra e na mensagem o que eles entendiam sobre esse passado. Ela se conecta com os ideais que é de uma República Guarani e pensando sobre como eles viviam, como a região era diferente, na imagem do Sepé Tiaraju, do Andresito, desses heróis”, explica.
O estilo da região é representado principalmente na figura de Noel Guarany, considerado seu pioneiro. O músico João Sampaio, 62 anos, acompanhou o início da carreira de Noel, a quem considera pai, irmão e amigo. “Para mim, ele foi um profeta das Missões, o precursor de uma cultura”, comenta. Em homenagem ao amigo, Sampaio tem reunido fotografias, reportagens e músicas para escrever a biografia de Noel. “Eu conheço várias histórias dele, acredito que ele merece ser reconhecido pelo seu pioneirismo na região”, aponta João.
Guarany conheceu Cenair Maicá em 1969 e logo começaram a produzir e viajar juntos. Noel gravou o primeiro disco em 1971. Segundo Sampaio, a diferença daquilo que Guarany tocava se dava na temática das letras. “O seu primeiro LP ‘Legendas Missioneiras’ estabelece de maneira definitiva a digitação diferenciada da sua guitarra crioula e missioneira bem como as temáticas sociais, antropológicas, sociológicas, históricas e folclóricas”, descreve o músico.
Outro artista que viveu a época é Jorge Guedes, 56 anos, que aprendeu a tocar o estilo missioneiro com Noel Guarany. Na época, Jorge foi convidado por Noel para gravar um disco e esse foi um dos impulsos para a sua carreira. “Ele me convidou para seguir na música missioneira porque ainda eram poucos. Disse que viu em mim um potencial para seguir na música e queria me apresentar como cantor missioneiro”, lembra Guedes. A intuição que Noel teve deu certo e até hoje Jorge toca em shows com a família.
No mesmo movimento, Pedro Ortaça conta que na medida que foi crescendo na música conheceu sobre a República Guarani e o que o período representou para a região. Aos poucos ele ingressou na música missioneira junto com Noel, Cenair e Jayme. “Eu canto e procuro cantar já denunciando muitas injustiças como as que aconteceram com os índios guaranis e como agora acontece com os negros desta terra. Vemos que a discriminação continua”, diz Pedro. Para ele, o estilo de cantar missioneiro é também sobre cantar a liberdade e denunciar as injustiças. “Nós não cantamos só flores, mas os espinhos também”, ressalta Ortaça.
Um disco, muitas histórias
“São quatro cernos de angico/ Falquejados na minguante.” Assim começa a poesia Os quatro missioneiros, de Jayme Caetano Braun, escolhida para abertura do disco Troncos Missioneiros. A gravação ocorreu em 1988 pela gravadora USA Discos do produtor musical Theodoro Alex Honenberger. “Quando nós chegamos no estúdio o Jayme disse que fez uma poesia de abertura do disco. Eu nem queria ouvir porque eu já sabia que seria bom. Me arrepio até agora de lembrar”, conta o produtor.
Quando teve a ideia do disco, Theodoro sabia que a música missioneira já tivera seu auge e os músicos que a criaram já estavam em fim de carreira. Noel estava com a saúde debilitada devido à uma doença degenerativa e Cenair havia realizado uma cirurgia que o deixara fraco. Os quatro músicos também já não viviam na região, exceto por Pedro Ortaça, o que tornava mais difícil o encontro. Mesmo assim eles aceitaram o convite.
A reunião dos quatro tornou o disco um clássico na região que até hoje os moradores se referem aos quatro troncos missioneiros como os grandes precursores da música. As 11 faixas se constituíram como um marco do estilo de tocar missioneiro e das letras que falam sobre a vida do gaúcho das Missões. Entre as músicas mais conhecidas estão Timbre de Galo, de Pedro Ortaça, na qual a letra também foi escrita pelo poeta são-borjense Apparício Silva Rillo, e Cepa Missioneira, de Cenair.
Foi na gravação da poesia Bochincho, de Jayme Caetano Braun, que Alex conta como fizeram a ambientação sonora. “Lembro que o Jayme queria que em um determinado trecho da poesia tivesse um barulho quando corta a gaita. Resolvi que na hora eu ia derrubar umas cadeiras e chutar uns bancos. Na hora, ele foi declarar e quando cortou a gaita eu chuto tudo e até machuquei meus pés. Sai rengueando no estúdio”, narra o produtor.
Por onde anda a música missioneira hoje?
Mais de 30 anos após o lançamento dos Troncos Missioneiros, as músicas ainda repercutem e hoje encontram novos missioneiros, formando uma cultura que passa de geração em geração. Laura Guarany, 38 anos, cantora e filha de Noel, lembra bem das visitas de João Sampaio ao pai e de passar horas com eles ouvindo discos argentinos. Para ela, a música deles a ensinou a valorizar a vida simples no campo e a história reducional. “Quando pequena não entendia muito, mas fui crescendo e reconhecendo a imensidão do trabalho dele”, comenta Laura. Hoje a cantora também é professora de técnica vocal e se dedica à música missioneira e ao folclore latino-americano.
Marianita Ortaça seguiu os passos do pai, mas foi além. Inspirada pela identidade missioneira, a psicóloga e empresária criou a grife “Marianita Ortaça” que busca trazer a cultura com a moda. Acompanhando o pai nos shows desde pequena, cresceu no meio e sempre foi incentivada a escrever sobre o que vivia, desenvolvendo o gosto pela cultura. Para ela, a música missioneira é algo que vai continuar, mas é preciso incentivar os jovens: “O maior desafio é mostrar a eles o que essa música representa, para que levem adiante essa riqueza que é a música da nossa terra, inspirada na preciosa história de amor, empatia, lealdade, liberdade e igualdade que os ancestrais Guaranis nos deixaram”.
Outro descendente dos quatro troncos que procura preservar a música é Atahaulpa Maicá, 41 anos, músico e sobrinho de Cenair. Atahaulpa tem o nome do último imperador Inca e, assim como Marianita e Laura, a presença dos músicos na família teve grande influência. Ele conta que a família Maicá era integrada por oito irmãos homens que formavam quatro duplas de cantores. “Me lembro, quando era novo, muitas vezes ao invés de brincar com os amigos, estava em casa observando o trabalho do Cenair, que era um trabalho de cidadania”, relata o músico. Atahaulpa já gravou dois discos e hoje ensina aos filhos sobre sua origem nas Missões: “Eles já têm outras influências, é interessante conhecer outras culturas, mas acho que tem que conhecer a sua também. Para mim, a pessoa rica é a pessoa que conhece de onde vem”.
Não apenas nos descendentes ficou a marca da música. O locutor da rádio São Luiz João Ribeiro, 64 anos, conheceu Noel Guarany ainda pequeno e desenvolveu uma sensibilidade poética para observar São Luiz Gonzaga. “Dei asas à imaginação, fazendo rimas de fatos e de devaneios criativos com inspiração no cotidiano missioneiro”, relata. Participante em diversos festivais, Ribeiro procura trazer em suas composições a simplicidade do campo e o emocional do Interior: “Quem adentra nesse mundo e convive vai ter a inspiração e elementos de sobra para fazer música e poesia”. Assim, seja em São Luiz Gonzaga ou em outro lugar, a música missioneira ultrapassa fronteiras e é carregada no sentimento de cada morador.
Fonte: Jornal do Comércio