“Me Serve um Liso Daquela Que Matou o Guarda” Por Roger Baigorra Machado

E se de repente, ao ligar o rádio, uma canção começasse a falar sobre você? Na letra da canção, o seu nome, os lugares que você frequenta, a pessoa que você gosta. A sua vida musicada. O que você faria?

Comecemos pelo início. E o início é mais ou menos assim: É que toda cidade tem ou já teve uma rua boêmia, um lugar ou uma região onde pulsa a vida, aquele lugar onde as pessoas se encontram para beber, descontrair e onde a vida noturna acontece, um lugar onde acontecem coisas inimagináveis, coisas que ficam na memória de muita gente, até de quem nem esteve neste lugar.

Pois Uruguaiana teve um lugar assim, um lugar que ficou marcado na história cultural do RS e na memória até de quem não o conheceu. E não foi por ter os melhores bares, tão pouco os melhores shows, nada disso. Foi por causa de uma música.

Em 1980, a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana ouviu pela primeira vez uma canção que se propunha a falar de um destes “lugares de boemia”. Era “Recuerdos da 28” que tomava conta do palco com os versos “De vez em quando, quando boto a mão nos cobre, não existe china pobre e nem garçom de cara feia”.

A letra de Recuerdos da 28 irrompia as barreiras que separam a vida da arte e ,feito uma facada que atravessa o pano e se encrava no corpo, ela ia fazendo tudo ao redor se contaminar pela lâmina do ritmo incessante de uma vida noturna e de um tempo que só habitavam a memória dos que estavam sentados diante do palco. Não bastasse isso, Recuerdos da 28 descrevia e citava o nome das pessoas que frequentavam este “lugar de boemia”. O problema, como eu disse, é que este lugar de boemia não era um emaranhado de bares e quiosques, este lugar era uma junção de bordéis e puteiros, onde, noturnamente, ricos fazendeiros, políticos, peões e trabalhadores braçais circulavam feito mariposas.

Não se tratava bem de uma rua, mas de uma grande zona, várias ruas ao redor dos trilhos do trem, um lugar geograficamente amplo e que concentrava estabelecimentos de prostituição que se espraiavam por quadras e mais quadras, a boemia e a prostituição misturados no pó da terra.

Nessa “grande zona” tinha de tudo e para todos os gostos. Nela havia um Cabaré com grife, afrancesado, como a “Casa Rosa” do Ivo Rodrigues, cujo público tinha poder aquisitivo maior e gostava de mulheres atraentes, até lugares “menos nobres”, mas ainda bem conceituados, como o Cabaré da Gessi ou o Cabaré Adelina. E havia também os locais frequentados por um povo mais afeito a diversão de baixo custo, como o Cabaré da “Porca Rabona”, bem menos “chique” que os demais, mas não menos famoso.

O Cabaré de Ernestina Gomes, ou o cabaré da Porca Rabona, ficava na rua 28 de Setembro (nome dado em homenagem a lei do Ventre Livre), ali onde a rua Doutor Maia se encontra com a Benjamim Constant. Nos idos dos anos 30 e 40, as pessoas vinham para a cidade de carroça ou cavalo. O uso de animais para o transporte implicava numa necessidade básica, logo, bem pertinho da Porca Rabona, foi construído um bebedouro para os cavalos: “Remancheio num boteco ali nos trilhos. Enquanto no bebedouro, mato a sede do tordilho “

Já faz um tempo, recebi de um querido amigo uns trechos de um livro sobre as “histórias de Uruguaiana”, obra do Daniel Fanti, que para além daquilo que nós já conhecemos do boca a boca das ruas, trouxe-nos algumas informações bem interessantes sobre a canção “Recuerdos da 28”.

Acontece que “Recuerdos da 28”, obra do nosso querido Chico Alves e seu pai, Knelmo, tem uma riqueza histórica que ultrapassa qualquer festival e, sem dúvida, está cravada na memória de qualquer um que goste de nativismo.

Dizem os ex-frequentadores do Cabaré da Porca Rabona que ele era um lugar agradável, onde sempre tinha uma boa briga e onde o butiá e a canha eram quase irmãos. Um lugar onde as demais bebidas eram baratas, preços para os cobres de qualquer bolso, o que fazia com que a beleza fosse um valor relativo, tanto para quem estava trabalhando, quanto para quem era cliente.

Quando guri, um amigo do meu pai me contou que a Ernestina ganhou o nome de “Porca Rabona” por um motivo quase escatológico, na verdade, a origem do nome remontava de uma cicatriz, pois a lenda que se reza diz que ela ao participar de uma briga, levara uma facada lá na dita “rabona”.

O Daniel Fanti lembra de uma passagem bem curiosa. Parece que o “querendão” da Porca Rabona, “um índio curto e grosso” e de “apelido Pescoço” não gostou nada de ver seu nome tocando nas rádios. Ora, imagine você ligando o rádio num domingo de manhã e seu nome está lá, na letra da música, dizendo que você é o amante da dona do Cabaré.

Pois diziam que o Mário Castro, também conhecido como Pescoço, não gostou nada disso. Reza a lenda de que ele queria a cabeça do Chico Alves e do seu pai. Conta o Daniel Fanti, que lá por 1997, no pátio da Prefeitura, encontrou o Chico Alves e perguntou para ele que “história era essa de que o Mário Pescoço e seus familiares queriam processar você e o Knelmo?”

O Chico contou que não era nada disso, que era bem pelo contrário: “Logo após o lançamento do disco da 10 Califórnia apareceu uma certa pessoa em minha casa e a Oristela, minha irmã, foi quem atendeu a porta e chamou-me: “Chico, acho que é contigo”, deduziu de imediato, pelo aspecto rústico de quem se apresentava. Fui atender a porta e ouvi a seguinte pergunta:

O senhor é um dos home, da Recuerdo da 28?

Vi e conheci o tipo e respondi-lhe:

Eu não! O senhor que é o homem da Recuerdos da 28. E ele respondeu:
Como, já me conhece?
Claro! O senhor é Mario Pescoço!
Pois é… queria conhecer os home que fizeram a tal de música. Depois que saiu essa música, tenho me incomodado um pouco. E não é que tive que comprar alguns discos, para dar de presente e com autógrafo e tudo!”

Mário Pescoço achava errado que seus familiares quisessem processar o Knelmo e o Chico. Afinal, como ele poderia fazer uma coisa destas, afinal, “se os home estão falando a verdade!”.

O Mário Castro, o Mário Pescoço, ou apenas o “Querendão da 28”, morreu em 1998, aos 88 anos, mas antes disso viveu um pedaço da história do Rio Grande do Sul em algumas profissões que hoje sequer existem mais, foi domador, peão e capataz de tropa, campeiro, peão de cerca, capataz de cerca, tosador, dono de máquina de esquila.

Em 1946, ao assumir um emprego como capataz de estância, levou junto a Porca Rabona, que largou tudo, o cabaré, os dois que tinha e ficou só com os seus recuerdos de uma rua chamada 28, tudo para viver com seu Querendão.

O Mário Castro, sem perceber, entrou para o folclore gaúcho, graças a sensibilidade artística de um pai e de um filho. E assim, novamente, a Califórnia da Canção Nativa cumpriu com sua missão: Fazer da vida, arte.

“E num relance, se eu não vejo alguém de farda, eu grito:

– Me serve um liso daquela que matou o guarda!”

Fonte: REDE SINA

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