Área com seguro agrícola caiu 27,8% no Rio Grande do Sul em 2023
Uma ferramenta centenária em países com tradição agropecuária ainda engatinha sobre o solo brasileiro. O seguro agrícola está chegando ao 19º ano no Brasil. Entre solavancos, períodos de crescimento e de quedas, o último dado mostra forte retração no número de contratos e de áreas seguradas no País e, claro, no Rio Grande do Sul, um dos Estados de maior demanda, justamente pela vocação para o campo.
Conforme dados extraídos do site do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), no ano passado, 16 mil produtores contrataram 22,2 mil apólices de seguro, para 962,9 mil hectares no Rio Grande do Sul. Os números correspondem a uma queda de 27,8% sobre a área do ano anterior e de 61,6% na comparação com o melhor ano, em 2021. No País, foram 70,2 mil produtores, com 107 mil apólices, para 6,25 milhões de hectares em 2023. Com o encarecimento do produto e recursos limitados pela União, a área segurada neste ano pode encolher novamente.
Em nota enviada ao Jornal do Comércio, o Mapa confirma que, para o ano de 2024, foi aprovado um orçamento de R$ 964 milhões para subvenção, ante os R$ 933 milhões destinados no ano passado. Afirma, entretanto, que a pasta buscará ampliar esse valor para conseguir atender ainda mais produtores. O Mapa também diz que o governo está estudando formas de aperfeiçoar o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) e torná-lo mais eficiente.
A diminuição dos investimentos em seguro agrícola se explica por razões diversas. Por conta dos eventos climáticos severos ocorridos em diversas regiões do País, apenas entre os anos de 2020 e 2022, as seguradoras pagaram aos produtores rurais cerca de R$ 16 bilhões em indenizações. E, em função dos gastos elevados, as companhias deram início a um processo de reavaliação dos riscos, que levaram à adoção de ajustes nas condições comerciais.
“Algumas empresas restringiram a comercialização em determinadas regiões, o preço das apólices (taxa de prêmio) para alguns cultivos e municípios foram majorados, e algumas coberturas ficaram mais restritas. Desta maneira, mesmo com o aporte orçamentário próximo de R$ 1 bilhão no Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), não foi possível manter, nos anos de 2022 e 2023, a tendência de crescimento que foi observada até 2021”, explica o Mapa.
O tema é espinhoso para o governo federal, que enfrenta a “sombra” da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, entre 2019 e 2022, quando o recurso para subvenção foi farto, e os produtores gaúchos contrataram a ferramenta para 7,2 milhões de hectares – e quase 40 milhões de hectares no Brasil.
Produtores, seguradoras e até mesmo o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro entendem que o valor precisa ser maior. A União busca alternativas para baratear o custo dos seguros, e uma das possibilidades no radar é o uso de Inteligência Artificial para cruzar dados como o tipo de cultura e variedade de sementes utilizadas pelo produtor com as previsões meteorológicas para a região. Mas a ideia não deve entrar em cena antes da safra 2024/2025.
Na resposta às perguntas enviadas pelo JC sobre o modelo de política agrícola e o orçamento para o setor, o Mapa disse, ainda, que, do ponto de vista do governo, o seguro rural é uma “ferramenta imprescindível “para a produção agropecuária e continuará sendo incentivado por meio do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). E que, “apesar das limitações orçamentárias, o PSR continua exercendo um papel fundamental no fomento deste instrumento de proteção, beneficiando dezenas de milhares de produtores a cada ano”.
Com risco de queda no caixa, entidades do agro querem alongar dívidas
No ano passado, 16 mil produtores contrataram 22,2 mil apólices para 962,9 mil hectares no Rio Grande do Sul
CLAITON DORNELLES/arquivo/JC
A ampliação doprazo para o pagamento de dívidas de investimento e custeio e do volume de recursos para o próximo Plano Safra estão no topo da pauta das entidades do agronegócio nacional com o governo federal. Após três quebras de safra em quatro anos e uma sinalização de perdas em diversas culturas na atual semeadura, muitos produtores rurais já mostram preocupação com a possibilidade de ver reduzida a formação de caixa. Além da menor produção, a queda nas cotações de importantes commodities agrava o cenário. E, sem seguro agrícola para as lavouras, a tensão só aumenta.
“O seguro agrícola salvou o Rio Grande do Sul na safra 2020/2021. Mas o rombo para as seguradoras foi enorme. E fez muitas resseguradoras saírem de cena desde então. Desde então, o custo do seguro subiu e a cobertura diminuiu. Já em 2022/2023, os seguros ficaram entre 20% e 30%. Hoje, muita gente planta sem seguro. E estamos por conta e risco”, diz o vice-presidente da Federação da Agricultura do estado (Farsul), Elmar Konrad.
Coordenador das comissões de Soja e de Crédito Rural e Seguro Agrícola da entidade, o agrônomo, que desenvolvemetade de sua lavoura da oleaginosa no noroeste gaúcho a descoberto, torce pela ocorrência de precipitações nos próximos dias. Se não chover em fevereiro, a colheita será ainda menor do que a estimada atualmente, já com alguma redução.
Para ele, o governo federal não está reconhecendo a importância do agronegócio na balança comercial brasileira. Atualmente, a subvenção ao seguro para uma lavoura de soja é de apenas 20% do valor pago pelo produtor (o percentual já foi de 60%), com uma referência de cobertura de 20 sacas de 60 quilos por hectare.
“A União está ciente das necessidades de mudanças. Uma série de pedidos foram entregues pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e outras entidades do setor diretamente ao ministro Carlos Fávaro, da Agricultura, no final de janeiro, em encontro do qual participaram também o secretário de Política Agrícola, Neri Geller, e o assessor especial do Mapa, Carlos Augustin. Entendo que o próprio governo do Estado deveria participar de alguma forma desse processo de proteção à nossa produção, pela relevância econômica que temos. Mas, neste momento, estamos à deriva”.
Mudanças no Proagro são prioridade para a Fetag
Estado teve boa parte das culturas de verão afetadas pela estiagem
FETAG-RS/DIVULGAÇÃO/JC
Com dificuldades no acesso ao Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro), a partir da mudança da regra de enquadramento, agricultores familiares se vêem embretados para o plantio. Para escapar da barreira de três acionamentos do seguro por cultura para cada produtor, situação que se materializou com as sucessivas estiagens e perdas nas lavouras, as entidades representativas dos pequenos agricultores negociaram junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Mas o novo modelo imposto pelo Banco Central, que tem autonomia e gere o programa com recursos do Tesouro Nacional, não resolveu o problema. A instituição ampliou o limite para até sete acionamentos, mas com critério de identificação da área assegurada no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
“Mas na agricultura familiar, muitas vezes há mais de um CPF por CAR. E, assim, esse modelo se esgotaria rapidamente porque o CAR não é instrumento de identificação fundiária. Não é solução. Chegaram a nos sugerir a busca por seguro privado. Mas as seguradoras sequer contratam para propriedades com menos de 40 hectares. Ficamos sem Proagro e sem seguro, com os juros do sistema financeiro a 16% ao ano”, diz o vice-presidente e diretor de Política Agrícola da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Eugênio Zanetti.
Segundo o dirigente, uma portaria do governo federal chegou a liberar a contratação de financiamentos para custeio, mas sem o Proagro. “O risco é muito alto. Estamos lutando pela volta da regra anterior, com ampliação do número de acionamentos por cultura, e não pelo CAR, além do reforço no seguro”.
Em 2023, a União pagou mais de R$ 10 bilhões em indenizações pelo Proagro. Desse montante, cerca de R$ 7 bilhões foram para o Rio Grande do Sul, Estado mais impactado pelo clima. O programa gastou, nacionalmente, R$ 2,5 bilhões em 2020, R$ 4 bilhões em 2021 e R$ 6,5 bilhões em 2022.
“Com a escalada nos sinistros e nos valores pagos, o Banco Central vem travando esse tema. Mas vai fazer economia acabando com a principal política pública para a agricultura familiar? Essa é a nossa principal luta do momento”, completa Zanetti.
Seguro é recente no País, que tem rivais globais com tradição na ferramenta
Criado somente em 2006, a partir de movimento da iniciativa privada, o seguro agrícola passou a ser operado também pelo governo federal, subvencionando diferentes percentuais dos valores pagos pelos produtores às seguradoras, de acordo com a cultura, relembra o especialista. Atualmente, são 20% para a soja e 40% para a uva, por exemplo.
A curva ascendente no volume de contratações sofreu um baque na metade da década passada. Em 2014, o País havia resguardado 9,8 milhões de hectares com seguros agrícolas. Mas o volume caiu 73%, para 2,65 milhões no ano seguinte, quando a União acabou efetuando o aporte de apenas parte do valor inicialmente projetado, levando muitos produtores a cancelarem as propostas encaminhadas às companhias.
“Aquele episódio foi um baque na confiabilidade do seguro agrícola no Brasil, porque nunca havia faltado dinheiro antes. Voltamos a crescer, mas o Brasil ainda não tem uma política sólida, com um valor blindado e reservado para o seguro agrícola. A quantia anunciada no orçamento anual da União acaba não se confirmando, e parte é direcionada a outros setores do governo”, comenta André Moschen, proprietário da Moschen Corretora de Seguros, com sede em Caxias do Sul.
Nos últimos anos, estiagens sucessivas causaram enormes perdas às seguradoras. O número elevado de sinistros acionados pelos produtores fez as companhias pagarem até R$ 7,00 para cada R$ 1,00 recebido. E, escaldadas, reduziram a capacidade de absorção de riscos.
“Mudaram as referenciais, os cálculos, as projeções e os investimentos por parte das seguradoras, que atuam num mercado global. Houve quem tenha preferido correr riscos – em um negócio de risco – em outros países”, diz o corretor, que estima uma redução de cerca de 30% na oferta de seguro agrícola. Para lavouras de trigo e soja, a retração pode chegar a 50%. E há municípios, inclusive, que, pela alta incidência de casos, já não conseguem contratar seguros para a produção, acrescenta.
A situação do momento contrasta com o histórico no Estado. De 2006 até o ano passado, foram segurados 19,4 milhões de hectares, totalizando R$ 65,5 bilhões em produtos, para cerca de 60 mil produtores no Estado. Na safra passada, entretanto, a área de soja protegida por seguro agrícola foi de 452,8 mil hectares, ante os 1,8 milhão de hectares de 2020. No trigo, foram 284,9 mil hectares, contra o pico de 550,2 mil hectares segurados, em 2014. E o arroz, que já chegou a ter 406 mil hectares com produção protegida no Rio Grande do Sul, em 2013, chegou a apenas 90,6 mil hectares sob contrato em 2023.
Gigantes do agronegócio, como Estados Unidos, Argentina e Índia, por exemplo, vêm fazendo o caminho inverso e ampliando a área segurada. Em 2022, o vizinho do Mercosul produziu em 21,2 milhões de hectares protegidos por seguro agrícola, aumentando 2,5% sobre o ano anterior. A Índia chegou a 22,1 milhões de hectares, crescimento de 11% em relação a 2021, mesmo percentual de crescimento americano no período, alcançando 199,8 milhões de hectares. Os Estados Unidos, aliás, fecharam 2023 com mais de 210 milhões de hectares agrícolas segurados, em um movimento de ampliação que chega a 30% desde 2020.
“É uma questão cultural. Essas nações acreditam e têm políticas de seguro agrícola centenárias. Os governos investiram muito para dar solidez a esse sistema, que hoje é forte e protege o produtor. O Brasil precisa acordar para o fato de que seguro agrícola é uma ferramenta de fomento à produção. É transferência de risco do produtor, que já tem uma margem de lucro pequena. Nesse curto espaço de tempo, já evitou a quebra de muitos produtores. O seguro não é para o produtor ganhar dinheiro. Mas para não perder e poder continuar na atividade”, conclui André Moschen.
Fonte: Jornal do Comércio