A Sociedade da Neve

Por: Fábio Verardi

O filme “La Sociedad de la Nieve” de 2023, relata uma das mais torturantes tragédias da aviação mundial, quando em 1972 um avião da Força Aérea Uruguaia levando 40 passageiros e 5 tripulantes caiu na Cordilheira dos Andes. O voo, que levava jogadores de Rúgbi uruguaios, partiu de Montevidéu, mas devido às péssimas condições climáticas, foi obrigado a fazer uma escala em Mendoza na Argentina. Na travessia da cordilheira andina em direção ao Chile, a cauda do avião se chocou com a montanha provocando a queda que matou instantaneamente 12 pessoas, e, horas mais tarde outras 5 pessoas. Naquele momento começava a saga de 28 sobreviventes que lutariam por suas vidas sob as mais severas condições climáticas do planeta. Enfrentando temperaturas de até 30 graus negativos, com nevascas, avalanches e sem comida, 16 pessoas foram milagrosamente resgatadas após 72 dias. Foram mais de dois meses num inóspito lugar onde nenhum animal da fauna e nenhuma espécie da flora são capazes de resistir, a sobrevivência dos 16 contrariou qualquer lógica científica desafiando os limites da fé e se traduzindo num verdadeiro milagre.

Como expectadores nos sentimos aptos para julgar, assim como os 28 e depois 16 sobreviventes foram julgados pelo mundo, após se saber que eles haviam se alimentado de carne humana para não morrerem de fome. Parece incrível que questões religiosas e opiniões de quem nunca foi submetido a reais dificuldades na vida tenham um peso tão relevante quando o que está em jogo é a própria vida. Enquetes são lançadas com o título “no lugar deles o que você faria?”, revelando um menosprezo ao milagre num ensaio de se buscar uma resposta de quem nunca vivenciou e nem vivenciará nada parecido, mas, isso mostra o que muitas mídias veem buscando ao longo da história, fabricar sentimentos para que as pessoas não precisem vivê-los e ainda assim possam dar sua opinião.

O mais incrível é que esse mundo de neve de isopor consegue colocar pessoas no topo do Evereste sem que elas nem precisem sair de casa, nos convencendo que temos a coragem dos super-heróis mesmo sem enfrentarmos nenhum perigo, nos imprimindo assim a certeza de que tudo podemos, mesmo sem a necessidade do esforço correspondente. Essa fórmula é falsa, mas está sendo repetida tantas vezes que estamos quase nos convencendo que ela pode ser verdade. Essa insistência está gradativamente ganhando mais força e muito em breve terá o poder de soterrar com toneladas de neve o que talvez seja o essencial de toda a vivência humana – a experiência. Esse dilema faz lembrar do best-seller ‘Arriscando a Própria Pele’ do escritor libanês Nassim Taleb, onde é apresentada a ideia de que devemos escolher os gurus que orientarão a nossa vida a partir da experiência que eles mesmos tenham construído em suas vidas, dessa forma, quem nunca enfrentou grandiosas batalhas jamais poderá ser guru de ninguém. Uma prova de que a vivência deve ser determinante na hora de opinarmos ou até validarmos um milagre. Em muitas sociedades orientais os anciões são tratados como sábios pelo fato de terem vivido mais experiências e assim conhecerem mais sobre a vida, um modelo que deveríamos copiar. Nessa lógica, a experiência se torna um fator determinante para sabermos identificar o valor das coisas a ponto de poder chamá-las de milagre.

Deus, interpretado pelo ator Morgan Freeman no filme ‘O Todo Poderoso’ nos ensina que o verdadeiro milagre não é caminhar sobre um lago ou dividir as águas de um rio, e sim, aquele que acontece todos os dias. Quando uma mãe solo trabalha o dia inteiro, busca sua criança na escola e ainda tem forças para cuidar, brincar, educar e estar pronta para no dia seguinte repetir tudo isso novamente, isso é um milagre. Se só a experiência é capaz de gerar a maturidade, só a vivência poderia autorizar os julgamentos. Quem atravessa diariamente as nevascas da vida e ainda assim consegue seguir em frente, certamente sabe identificar que a vida é um milagre todos os dias.

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