Festivais nativistas movimentam há 50 anos o cenário musical do interior gaúcho

Dizem que o nativismo é um sentimento. Um sentimento que sustenta o que se entende como cultura gaúcha, em suas múltiplas vertentes. Tudo começou com a realização de um festival a cada final de semana. Nos mais recônditos rincões do Rio Grande do Sul, desde 1971 promovem-se eventos dedicados a se cantar o apego ao lugar.

Já se vão 50 anos de criação permanente em inúmeros palcos, garantindo um circuito que sustenta carreiras de cantores e compositores, além de profissionais de outras áreas, técnicas e artísticas. Consolidou-se um movimento.

Embora o ápice possa ter passado, uma aura nativista persiste, sendo ressignificada. Diversas estéticas matizam os festivais, entre os mais abertos a novas tendências e outros mais fechados a expressões terrunhas. Há alguns que reforçam características locais, como a Moenda de Santo Antônio da Patrulha, voltada à cultura afro e litorânea, e outros que procuram conectar-se à América Latina, como o Musicanto de Santa Rosa. Todos contribuíram para a consagração do que hoje se conhece genericamente como música gaúcha.

Essa efervescência cultural pode ser medida pelo estudo Memorial dos Festivais Nativistas (Sedac, 2014), que enumerou a apresentação de mais de 13 mil canções nos primeiros 40 anos. No mesmo período, foram lançados 1.115 discos, gravados por estúdios como ISAEC, Discoteca e Quero Quero, alavancando alguns artistas à indústria fonográfica.

Outra parte da sustentação do movimento está na comunicação. Nos anos 1980 surgiram veículos especializados, como as revistas Tarca, Gaudéria, Nativa e Campeiro, os jornais Tchê e Nativismo, a rádio Liberdade, os programas de televisão Galpão Nativo (TVE) e Galpão Crioulo (RBS). Essa estrutura ressoava aplausos, vaias e disputas acaloradas.

As polêmicas podem ter servido de estímulo por um determinado período. Havia uma euforia. Em mesas de bar Estado afora, as pessoas debatiam entre manter a raiz ou inovar, defendendo suas canções favoritas. Havia bares temáticos, como a Pulperia, na Capital.

Atualmente, vive-se uma retomada, após o pior momento da pandemia de Covid-19. A agenda de 2022 somou mais de 30 eventos, entre os já realizados e outros confirmados para novembro e dezembro.  

Da Barranca ao Peitaço

Oristela Alves foi uma das 40 mulheres que participaram do primeiro Peitaço da Composição

Oristela Alves foi uma das 40 mulheres que participaram do primeiro Peitaço da Composição

ACERVO JOÃO VICENTE RIBAS/REPRODUÇÃO/JC

O momento é de mais diversidade. Em 2019 produziu-se o primeiro Peitaço da Composição, contrapondo a Barranca, festival exclusivo para homens realizado em São Borja desde 1972. Foi uma ideia de Shana Müller, cantora e apresentadora, quando percebeu nos palcos a falta de temas femininos e de mulheres compondo.

Logo na primeira edição, em Júlio de Castilhos, participaram mais de 40 mulheres. Durante quatro dias, as participantes acamparam e se dedicaram exclusivamente à música. Entre elas, a cantora uruguaianense Oristela Alves, que teve o incentivo de compor pela primeira vez uma melodia, após mais de 40 anos de palco.

A questão de gênero é um dos vetores de disputa no nativismo, também permeado por dicotomias estéticas entre o rural e o urbano, a tradição e a projeção, e outros embates. Oristela observa que hoje é um momento bem diferente: “muitas meninas cantando, coisa que não se via até 10 anos atrás”. Da nova geração, cita algumas: Maria Alice, Nicole Carrion e Bibiana Alves.

Na primeira vez em que subiu ao palco da Califórnia da Canção em 1975, Oristela encarnou o espírito do nativismo e acabou ganhando o troféu de melhor intérprete. Depois, passou também a atuar como produtora de festivais. Diante do quadro crescente de profissionalização, observa que boa parte dos músicos sobrevivem das ajudas de custo e da premiação. Por isso, acredita que “passada a pandemia, o pessoal está com muita sede de palco”.

Canções que tocam no galpão e na cidade

Festivais como a Califórna da Canção (aqui em arte da edição XXII) apontavam para a criação de um cancioneiro gaúcho

Festivais como a Califórna da Canção (aqui em arte da edição XXII) apontavam para a criação de um cancioneiro gaúcho

PAULO AZEVEDO/REPRODUÇÃO/JC

Lá no campo, não há lugar nem momento especial para produzir música e poesia. Quando volta da lida, a peonada se reúne no galpão para a roda de causos. Este hábito foi observado e descrito pela antropóloga Ondina Fachel Leal, a partir de pesquisa realizada por volta de 1986. Ela dedicou-se a conviver com peões de estância na região do Pampa, ao mesmo tempo em que os festivais despertavam respeito em um público amplo. “Ser gaúcho estava mais valorizado do que agora”, assegura.

O resultado da pesquisa está no livro Os gaúchos: culturas e identidades masculinas no pampa (Tomo, 2021). Junto aos peões, observou sua sensibilidade, contrariando o estereótipo de grosso, bagual. “Homens sem estudo, uma coisa rústica, mas de uma delicadeza, uma ternura pra poesia e pra música que me emocionava muito”, lembra.

Além de tocarem e cantarem, costumavam escutar no rádio a programação dos festivais, identificando-se com algumas canções e criticando outras. Os peões também reprovavam a moda gauchesca entre os citadinos, que elevava os preços das alpargatas, do fumo de corda, entre outros produtos pertencentes aos seus costumes.

Na Califórnia de 1987, por exemplo, Ondina registrou que Mulheres campeiras, cantada por Victor Hugo, tocou aos peões. Outras eram ironizadas: “esses aí pensam que são gaúchos”.

Diferente do galpão, em torno daquela canção feita para ser apresentada no palco e depois gravada em disco para rodar na rádio, a maioria dos envolvidas não possui vivência campesina. Vinícius Brum é um deles: nascido e criado na cidade, só teve contato com o campo quando visitava a fazenda dos tios durante as férias. Parafraseando o argentino Jorge Luis Borges, o compositor ressalta que “a gauchesca platina traz o interesse do homem urbano olhando pro meio rural. Nunca é o gaúcho que canta, mas alguém identificado com ele”.

Já em relação ao Rio Grande do Sul, Vinícius reafirma que “nativismo é um sentimento, um apego a um lugar”. Também é o resultado de inquietações estéticas que geram diferentes festivais. “Tudo isso cria esse fenômeno, que podemos chamar de regionalismo ou de nativismo. Só não é tradicionalismo”, conclui.

Vinicius Brum fez parte de um dos grupos mais ousados, o Tambo do Bando. “No auge, num mesmo festival tu encontrarias todos os matizes, desde a música mais diretamente ligada à lida campeira, ao lado de tantas outras linguagens que não tinham essa intenção”, recorda. Entre eles, surgiram polêmicas que, na avaliação do compositor, eram externas, não dos artistas. Prova disso teria sido o festival Clarin, em São Borja, em 1989, em que subiram ao palco lado a lado Mano Lima e Tambo do Bando.

De acordo com Vinícius, as pessoas passaram a observar estilos diferentes e criaram linhas (campeira, manifestação rio-grandense, livre, etc.), que colocavam didaticamente a diferença para o público. “Tudo fazia parte da tentativa de construir um cancioneiro”, garante.

O regionalismo, até aquela época, era exclusivamente bailável, muito simples e direto, a exemplo de Teixeirinha. “A Califórnia revoluciona isso, porque vai colocar dentro da mesma temática canções que são pra ouvir, com um pouco mais de densidade poética e experimentação”, conclui.

Os festivais repercutem, têm espaço midiático, registram em vinil e juntam bastante público. Nos anos 2000, algumas carreiras estão consolidadas, a exemplo de Luiz Carlos Borges, Neto Fagundes, Elton Saldanha, Rui Biriva, Eraci Rocha, Fátima Gimenez, Maria Luiza Benites. E de 2010 para cá, os festivais continuam acontecendo. Mas Vinícius avalia que, “talvez em função da profissionalização, parece que deixam de ser o palco da experiência”.

Mapa repleto de festivais

Festivais como a Seara da Canção Gaúcha de Carazinho foram tema de coletâneas em vinil e cassete

Festivais como a Seara da Canção Gaúcha de Carazinho foram tema de coletâneas em vinil e cassete

POLYGRAM/DIVULGAÇÃO/JC

A partir dos arquivos do extinto Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), realizou-se um mapeamento das quatro primeiras décadas de festivais. Nestes dados, fornecidos por Vinícius Brum, é possível identificar o ano de criação de cada um, o local e quantas edições realizou até 2015. Conclui-se que, até aquela data, foram 169 eventos diferentes, num total de 1.329 edições.

Tudo começou na década de 1970, com o surgimento de quatro festivais. Entre eles, as pioneiras Califórnia e Barranca, que seguem em atividade até hoje, e a Vindima, organizada na serra gaúcha e descontinuada em 1993.

Já na década seguinte, um grande salto. Surgiram 67 novos eventos, sendo um deles pela primeira vez fora do território gaúcho. A seguir, nos anos 1990, foram criados mais 41 festivais, incluindo quatro em outros estados. Foi nesta década que começou a Sapecada, em Lages (SC), um dos mais longevos, que realizou sua 28ª edição no último mês de junho. A seguir, nos anos 2000, o ritmo permaneceu, com a estreia de 38 eventos.

Até 2015, 97 cidades do estado já haviam promovido pelo menos um festival. Entre elas, pequenos municípios com menos de 5 mil habitantes, como Caibaté, Muitos Capões, Nova Esperança do Sul e Arambaré. Já Porto Alegre é um caso especial. Promoveu até hoje 10 festivais diferentes, mas nenhum se consolidou (quatro deles não passaram da primeira edição).

Debates ressoam através do tempo

Shana Müller (esq.) e Oristela Alves aparecem em série exibida na TVE-RS

Shana Müller (esq.) e Oristela Alves aparecem em série exibida na TVE-RS

CINEMATOGRÁFICA PAMPEANA/DIVULGAÇÃO/JC

No último setembro, o Instituto Estadual de Música promoveu um encontro para celebrar os 50 anos dos festivais, na Casa de Cultura Mário Quintana. Os convidados dividiram reminiscências e, por vezes, debateram veementemente. Gilberto Carvalho abriu as falas indignado com a exposição montada na entrada, a do projeto Memorial dos Festivais. O compositor e diretor da extinta gravadora Quero Quero criticou as informações sobre a origem da Califórnia.

Para ele, o idealizador do evento foi Colmar Duarte e não há outra versão possível, ao contrário do que estava exposto, com o protagonismo dividido com Henrique de Freitas Lima. “Eu conto porque estava lá”, disse. E essas histórias estarão presentes no livro 50 histórias para 50 anos de Califórnia, que Carvalho está lançando.

Detalhe é que o pesquisador responsável pela exposição estava sentado ao lado, e logo tomou o microfone para se defender. Giovani Mesquita argumentou que aquela era uma pesquisa histórica baseada em documentos. Seu trabalho gerou além da exposição, o livro Memorial dos Festivais Nativistas e uma série de shows realizados em 2014.

A seguir, naquele encontro, reconheceu-se que a compositora Marlene Pastro estava na plateia. Então foi convidada a sentar junto aos convidados. Entre eles, Maria Luiza Benitez, outra que fez história quando poucas cantoras subiam ao palco. “De dia cozinhava no acampamento, à noite virava estrela e cantava”, lembra.

Mais para o final da noite, reativou-se outra polêmica. Criticaram a hegemonia atual do campeirismo e do cantar gritando. Marlene Pastro lamentou a “falta de músicas mais elaboradas, sinfônicas e delicadas”. O ex-diretor do IGTF Claudio Knierim foi categórico: “o movimento nativista, enquanto movimento estético, acabou nos anos 1980”. Benitez discordou, mas não teve oportunidade de justificar.

Para além dos embates, os participantes do encontro relembraram de forma amistosa outros pontos sensíveis na história dos festivais: a censura a “ritmos alienígenas” como o chamamé, a vaia violenta contra Jerônimo Jardim em 1985, e a proibição do sotaque castelhano, que prejudicou o argentino naturalizado brasileiro Dante Ramon Ledesma e o brasileiro que cresceu no Uruguai Daniel Torres.

O cineasta Henrique de Freitas Lima, filho de um dos fundadores da Califórnia, lançou em outubro uma série documental sobre as cinco décadas de nativismo. Os nove episódios estão sendo exibidos na TVE-RS. A produção apoiou-se na gravação de mais de 60 depoimentos e shows realizados em Porto Alegre e Xangri-lá, com performances de grandes cantores interpretando canções que marcaram época. Também ilustram os episódios cenas de filmes dirigidos por Lima e de outros diretores, que retratam a paisagem sul-riograndense. A série defende uma tese mais coletiva sobre a origem da Califórnia e faz uma homenagem ao pai do cineasta.

A consolidação do Canto Galponeiro

Érlon Péricles (esq) e Pirisca Grecco venceram o Canto Galponeiro de 2022

Érlon Péricles (esq) e Pirisca Grecco venceram o Canto Galponeiro de 2022

JOÃO VICENTE RIBAS/ESPECIAL/JC

Outubro teve sete festivais da canção, nas cidades de São Gabriel, Vacaria, São Valentim, Santo Ângelo, Dom Pedrito, Arroio do Sal e Passo Fundo. Nessa última, o Canto Galponeiro premiou dois nomes destacados nas últimas décadas de circuito, o compositor Érlon Péricles e o cantor Pirisca Grecco. Venceram com o rasguido doble Especial de primeira.

Pirisca é um dos cantores mais assíduos na cena e se faz presente neste retorno aos palcos pós pandemia. “São centros culturais que a gente visita, cada camarim é um centro nervoso com 60 músicos, cada um com o seu festival ideal na cabeça”, observa. O cantor acredita pertencer a mais uma geração que vai dar mais um impulso no circuito dos festivais e aguarda o surgimento da seguinte.

Érlon Péricles também tem tido atuação intensa e identifica diferentes momentos, primeiro com a música de projeção mais em alta, e agora com a música campeira. “Acho que é uma tendência que o público vai pedindo”, diz. E se moldar ao que o movimento pede é sua especialidade, compondo de acordo com as mais diferentes estéticas. Em relação ao Canto Galponeiro, comenta que o festival dá aula de organização.

Passo Fundo promove atualmente um dos festivais mais estruturados. Relativamente novo, chegou à 6ª edição se consolidando perante o público e o meio artístico. O produtor Fabrício Cunha revela que foram 650 músicas inscritas neste ano, mais que o dobro da primeira edição em 2016. “Nosso festival tem proporção grande, um custo de R$ 300 mil, metade para premiações e ajuda de custo aos artistas”. Neste ano, foram oito patrocinadores e 24 apoiadores, captados com auxílio da prefeitura local.

Nos três dias de Canto Galponeiro no centro de eventos Gran Palazzo, são servidas mais de 1.500 refeições, trabalham cerca de 150 profissionais e o público é de mais de mil pessoas por noite. O resultado foi registrado em áudio e vídeo, gerando um disco para as plataformas digitais, CD e DVD.

Sobre o estilo campeiro do festival, o produtor Daniel Busch afirma: “o público quer interagir, quer música pra cima, alegre; ao menos na nossa região é essa a característica”. Já o cantor passo-fundense Clovis Mendes acredita que o Canto Galponeiro privilegia músicas festivas em contraponto ao clima “pra baixo, triste, bucólico” das canções que permearam a cena bastante tempo e que teriam levado a uma perda de público.

Liliana Cardoso, apresentadora do Canto Galponeiro, vê uma retomada lenta da cadeia produtiva da cultura. Após 50 anos, acredita que os festivais continuam firmando seu espaço, a partir de uma grande diversidade. “O Rio Grande do Sul tem essa identidade do negro, do índio, do alemão, do italiano, essa mescla que nos faz tão diferentes”, afirma.

Retomada da agenda

Festivais nativistas movimentam calendário de eventos neste final de ano

Festivais nativistas movimentam calendário de eventos neste final de ano

JOÃO VICENTE RIBAS/ESPECIAL/JC

Novembro será o mês de mais atividade no ano de 2022, com a realização de 10 festivais de música. Só no final de semana que passou, já foram cinco eventos simultâneos. Entre eles, dois dos mais tradicionais, a Tertúlia de Santa Maria e o Reponte de São Lourenço do Sul.

A temporada começou em abril, com a 15ª edição do festival Jerra, realizado em Santa Vitória do Palmar. A seguir, eventos longevos retornaram à ativa após a pandemia, a exemplo do Carijo de Palmeira das Missões, a Sapecada, a Coxilha de Cruz Alta e a Moenda. O calendário seguiu com algumas estreias, como o Festival Sant’Ana Canta Adair de Freitas, em julho em Santana do Livramento, e o Terral da Canção Gaúcha, em setembro em Balneário Camboriú.

O encerramento do ano terá cinco eventos em dezembro (veja no quadro), incluindo o festival mais aguardado, a Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana.

Já para 2023, o Festival da Barranca prepara uma edição abrangente para celebrar seus 50 anos. Serão promovidos shows abertos ao público, antes da realização do acampamento para convidados, em São Borja no feriado de Páscoa. Nomes que marcaram a história do nativismo, como o grupo Os Angüeras, serão escalados para subir ao palco e para gravar um disco.

Novembro

– Dom Pedrito (dias 11 a 13) – 37º Ponche Verde da Canção Gaúcha

– Encruzilhada do Sul (11 a 13) – 3ª Esquila e Vindima do Canto Gaúcho

– Ijuí (17 a 19) – 11º Canto de Luz

– Carazinho (25 a 27) – 21ª Seara da Canção Gaúcha

– Júlio de Castilhos (25 a 27) – 4ª Convenção Nativista

Dezembro

– Cachoeira do Sul (dia 3) – 28ª Vigília do Canto Gaúcho

– Santa Vitória do Palmar (dia 3) – 6ª Monta da Canção Nativa

–  Arroio do Só (3 e 4) – 1ª Tropeada da Canção

–  Uruguaiana (8 a 10) – 42ª Califórnia da Canção Nativa

– Bagé (16 e 17) – 13º Canto Sem Fronteira

Fonte: Jornal do Comércio

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