As cinco décadas da Califórnia da Canção, festival que projetou grandes nomes
Com 853 músicas inscritas, a 43ª Califórnia da Canção Nativa premiou três milongas em dezembro de 2021. O troféu Calhandra de Ouro coube a O tempo de meu pai, canção de Hermes Lopes e Nilton Ferreira que emocionou o público ao referir-se ao velho fazendeiro que perdeu a memória e já não campereia. “Essa canção confirma a tradição da Califórnia de apresentar temas sociais: foi a primeira vez que se trouxe ao palco o drama da doença de Alzheimer”, lembrou o radialista Jaime Ribeiro, de 61 anos, que acompanha o festival desde sua primeira edição e mantém há 20 anos o programa A Voz do Pampa na Rádio 96FM, de Uruguaiana. A Calhandra de Prata foi para De pé no chão, de Mauro Moraes e Pirisca Grecco, ambos uruguaianenses. E a última calhandra (bronze) foi para Tributo em Milonga a um certo José, de Kleber Fernandes e Kayke Mello, homenagem a José Claudio Machado, uma das grandes vozes do nativismo e autor da melodia de Pedro Guará, ganhador da 2ª Califórnia, em 1972. “Foi difícil decidir, mas acabou tudo bem”, disse a cantora Loma Pereira, que fez parte do júri, ao lado da cantora e radialista Maria Luiza Benitez, do poeta Vaine Darde, do músico Gustavo Brodinho e do cantor Ricardo Tubino Dornelles.
Em 50 anos, a Califórnia sempre trouxe à luz alguns temas alheios à temática dominante nos meios tradicionalistas, que costumam exaltar prioritariamente o heroísmo da vida campeira. Quarenta anos atrás, a decisão saiu pelo voto de minerva do presidente do júri, o cantor Luiz Carlos Borges, que votou em Desgarrados, toada-valsa de Sérgio Napp e Mario Barbará sobre as vítimas do êxodo rural.
Um dos aspectos mais relevantes da última edição da Califórnia foi a reconciliação de grupos cujas divergências provocaram o cancelamento de sete edições do festival “por falta de recursos”. Em 2020, no auge da pandemia, o festival foi realizado em forma de “live”, bancada basicamente pela prefeitura. Em 2021, mesmo sem conseguir juntar os R$ 350 mil orçados inicialmente, o CTG Sinuelo do Pago (que há anos perdeu um terreno para cobrir dívidas da Califórnia) ganhou novamente o apoio do prefeito Ronnie Mello (PP), que custeou a armação de um palco no parque central de Uruguaiana onde, na noite da final, dia 18 de dezembro (domingo), sem pagar ingressos, se concentraram 2 mil pessoas – um público pequeno se comparado às 15 mil pessoas que todas as noites se reuniam na Cidade de Lona, em área administrada pela unidade local do Exército, que ainda emprestava as barracas, nos anos dourados da Califórnia, em plena ditadura militar.
Desta última vez, porém, o evento contou com a transmissão ao vivo da TVE, que ainda se mobilizou para fazer um excelente documentário histórico apresentado no dia 16 de dezembro pela repórter Simone Feltes. Foi um reconhecimento de que a Califórnia, mesmo num ciclo de baixa, permanece como um importante movimento cultural no Rio Grande do Sul. “O próprio nome do festival sintetiza a busca humana por uma ligação real com as próprias raízes”, disse ao JC o músico Vinicius Brum, que estreou na Califórnia em 1980, um dos anos mais ricos do evento. Ele nunca se esqueceu de uma frase dita pelo poeta Luiz Coronel, autor de várias letras premiadas: “A Califórnia da Canção Nativa é a nossa Semana de Arte Moderna de 1922”.
Sob o signo da revolta
Tudo começou em 1971, quando um grupo liderado pelo fazendeiro Colmar Duarte organizou a primeira califórnia de música nativa, assim chamada porque, no ano anterior, a milonga Abichornado, de Colmar e seu parceiro Júlio Machado da Silva Filho, havia sido desclassificada num festival de música popular da Fronteira-Oeste, organizado por uma rádio. Além da queixa pela exclusão, o autor da milonga ficou chateado porque foram declarados vencedores um bolero em espanhol e um baião que falava da seca do Nordeste. Foi uma luta para implantar o novo festival.
Na primeira noite do evento que acaba de completar meio século, foram vendidos apenas 17 ingressos no cinema para 1.200 lugares. Na segunda noite, metade da lotação. Na final, casa cheia. Entre apenas cinco dezenas de concorrentes, a vitória foi de Reflexão, canção de Colmar Duarte e Julio Machado da Silva Filho cantada pel’Os Marupiaras – conjunto cuja história está contada em livro – e inscrita à última hora sob incentivo do folclorista Paixão Côrtes, que apoiou a promoção desde a largada e, para não perder a ocasião de estar presente, promoveu em Uruguaiana um evento ovelheiro da Secretaria da Agricultura, da qual era funcionário. Em segundo lugar, ficou Prece ao minuano, hoje um clássico de Telmo de Lima Freitas.
No rastro da grande carreirada musical uruguaianense até hoje promovida pelo CTG Sinuelo do Pago, foram criados festivais em outras cidades gaúchas. No auge, em 1990, havia no Estado 53 festivais, número que entrou em declínio à medida que a maioria batia quase só na tecla do tradicionalismo, enquanto crescia a concorrência de outros estilos musicais como o axé music, o funk, o rock e o reggae. Segundo a Ronda dos Festivais, blog de Jairo Reis, em 2021 houve 21 festivais de canções, sete de poesia e um de música instrumental. Em meio à grande barafunda musical do século XXI, porém, o festival de Uruguaiana segue como o principal evento da música nativista do Rio Grande do Sul – porque, às vezes de má vontade, sempre procurou se ajustar a críticas, demandas e queixas dos participantes.
Altos e baixos
Na quarta edição, o Grupo Pentagrama, liderado por Ivaldo Roque e Jerônimo Jardim, deu um xeque no júri ao apresentar Coto de vela, uma canção alusiva ao Negrinho do Pastoreio. Inovadora vocal e instrumentalmente, a música não ganhou nada, mas desencadeou uma mudança no regulamento, que a partir da quinta edição passou a aceitar inscrições em três linhas musicais: a campeira, a de manifestação rio-grandense e a de projeção folclórica. Não era fácil saber quem era o quê, mas funcionou; das melhores em cada modalidade, uma passou a ser eleita ganhadora da Calhandra de Ouro. Em 1975, a vitória foi de Roda canto, toada de Aparicio Silva Rillo e Mário Barbará. A prata foi para Cordas de espinho, de Luiz Coronel e Marco Aurélio Vasconcellos. Bronze para Piquete do Caveira, rancheira de José Fogaça e Kledir Ramil. Por aí se vê como as califórnias começavam a consagrar nomes fortes da poesia e da música. Prova disso foi que, na semana seguinte à final de 2021, o Teatro Dante Barone, na Capital, abrigou um raro espetáculo em homenagem aos 50 anos da Califórnia da Canção Nativa. Defendidas por grandes vozes do cancioneiro gaúcho – Maria Luiza Benitez, Marco Aurelio Vasconcellos, João de Almeida Neto e Loma Pereira, entre outros -, foram apresentadas 20 canções, a maior parte delas classificada ou premiada em Uruguaiana, a maior cidade da Fronteira-Oeste, com 126,8 mil habitantes (2020).
Foi um amostra eclética e naturalmente incompleta do universo musical do Rio Grande, mas a sequência de números musicais foi intercalada por cenas teatrais vividas pelo ator Zé Adão Barbosa, que se vestiu de dono do Bolicho da Linha, alusão a um antigo bar das proximidades da estação ferroviária da capital da Califórnia. Nesse evento calcado num modelo de show rotativo criado há 10 anos no Auditório Araújo Vianna pelo produtor Ayrton Patineti dos Anjos, para propiciar aos moradores da Capital o clima dos festivais do Interior, ficou evidente o quanto a Califórnia mexe com a emoção dos músicos. A simples classificação entre os 24 melhores já foi motivo de festa; ficar entre os 12 finalistas ainda é visto como uma vitória; ganhar um dos troféus chegou a significar um passaporte para a profissionalização. “Minha carreira como cantor começou com Tropa de osso“, afirmou Luiz Carlos Borges, ganhador da Calhandra de Prata em 1979, o ano da consagração de Telmo de Lima Freitas, que ganhou o ouro com Esquilador.
Além de Borges, as décadas de 1970 e 1980 revelaram talentos canoros como Leopoldo Rassier (Veterano), Cesar Passarinho (Guri) e Mario Barbará (Desgarrados); e colocaram em disco centenas de canções que estão na memória do povo. No entanto, esse fenômeno cultural permanece praticamente ignorado pela academia. Alvaro Santi, licenciado em Música que trabalha no departamento de Cultura da prefeitura de Porto Alegre, analisou as canções premiadas nos primeiros 20 anos, escreveu uma tese de mestrado resumida em 2004 no livro Do Partenon à Califórnia, mas perdeu o interesse pelo festival em seus “anos de letargia”, depois de 1990. Em artigo publicado no livro O alcance da canção (2016), organizado por Luís Augusto Fischer e Guto Leite, professores da Ufrgs, Alvaro Santi concluiu que a Califórnia deu uma “atualizada” nas tradições gaúchas e “ajudou a espantar o estigma de ‘grossura’ com que, há poucas décadas, eram vistas a manifestações culturais de caráter regional pela maioria da população urbana”.
Na realidade, o sucesso dos festivais nativistas “normalizou” o uso da bombacha em Porto Alegre, onde se abriu um consistente mercado de trabalho para cantores e músicos identificados com o nativismo, que pode ser definido como o tradicionalismo de pilcha nova. Foi no popular bairro do Bom Fim, na Capital, que nasceu o gaiteiro Renato Borghetti, festejado pelo público em diversos festivais do Interior. Nos seus melhores anos, a Califórnia teve atrações como Gilberto Gil, Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Elba Ramalho e outros artistas populares do Brasil e de países vizinhos. Num desses shows, a cantora Loma Pereira foi convidada para trabalhar no Rio com o grupo do compositor Zé Ramalho. Como tantos outros músicos gaúchos que experimentaram a vida na ‘capital cultural’ do País, ela foi, atuou e voltou para continuar seu trabalho junto às próprias raízes. Por isso, ela continua vendo a Califórnia como uma grande vitrine do cancioneiro sulino.
Olhada com certo desdém por intelectuais urbanos, a Califórnia possui memorialistas que se comprazem em relembrar sua trajetória ao longo do tempo. Idealizador do evento, o fazendeiro Colmar Duarte publicou em parceria com José Édil Alves um livro sobre os 30 anos da Califórnia da Canção Nativa. Lúcido, prestes a completar 90 anos (em maio), ele se orgulha de ter aberto a cancha para as carreiras que se repetem anualmente, mas em 2020, em depoimento a um excelente documentário histórico da Unipampa, se declarou “com dois corações”: parecia conformado com a hipótese da extinção do evento. No entanto, na final de 2021, subiu ao palco para entregar a Calhandra de Ouro aos vencedores.
Gilbérto Carvalho, o primeiro apresentador do evento e autor da letra de Negro da Gaita, vencedora da 7ª Califórnia, lembra que a sequência semanal de festivais em cidades médias e pequenas passou a ser o ganha-pão seguro de dezenas de músicos que, além de se apresentar nesses eventos em fins de semana, passaram a gravar discos e desfrutar de convites para tocar em bailes e exposições agropecuárias – não apenas no Rio Grande, mas em outros estados onde é forte a presença de gaúchos cultivadores de soja e cultores do tradicionalismo. “A Califórnia demonstrou que o Rio Grande do Sul tem alto poder de criação poética e musical”, diz Carvalho, que ressalta o surgimento de um contingente expressivo de mulheres cantoras e instrumentistas, além de grupos de baile exclusivamente femininos. Ele cita duas mulheres compositoras: Marilene Ribeiro Machado, falecida há um ano, e Vera Ione Molina Silva, ambas com livros editados. E destaca Marlene Pastro, “com vasta obra conhecida”. Entre as cantoras, ainda está ativa Oristela Alves, melhor intérprete da 5ª Califórnia e que apareceu no show do Dante Barone, dias atrás, cantando em dueto com Shana Muller, apresentadora do Galpão Crioulo da RBS TV. Nos primeiros festivais do século XX, Fatima Gimenez rivalizava com Malu Benitez. Nas duas últimas Califórnias (2020 e 2021), a melhor intérprete foi Lu Schiavo.
Colcha de retalhos
A Califórnia da Canção Nativa, com sua nomenclatura sonoramente evocativa de ajuntamentos populares em torno de carreiras de cavalos, pode ser comparada hoje a uma colcha tecida pacientemente em mutirões anuais que acabam por ornar a cama do tradicionalismo, movimento inventado há 70 anos para preservar costumes senhoriais da vida campeira do RS. Ao entrar em sua sexta década, a Califórnia ainda é a vanguarda de um movimento de busca de raízes iniciado no final do século XIX, quando o major João Cezimbra Jacques, em Santa Maria, começou a pesquisar os fundamentos literários do gauchismo. A partir de 1948, em Porto Alegre, os estudantes colegiais Paixão Cortes e Barbosa Lessa, pesquisando as danças, inspiraram a fundação dos centros de tradições gaúchas, hoje espalhados pelo Brasil e diversos países. Nos anos 1950, esse movimento expandiu-se no rádio com o Grande Rodeio Coringa, programa da Rádio Farroupilha que dava espaço nos domingos à noite para declamadores, cantores, gaiteiros e trovadores. Nele atuava o poeta Luiz Menezes, “sota-capataz” do apresentador Darcy Fagundes, uruguaianense considerado o principal difusor da música gauchesca, cujos astros dominantes eram Teixeirinha, Gildo de Freitas e os Irmãos Bertussi, sucessos no rádio e em discos. E também em circos e cinemas do interior. Aqui e ali vicejavam alguns conjuntos musicais que mesclavam cantores, instrumentistas e compositores. O mais famoso foi o Conjunto Farroupilha, que se projetou internacionalmente graças ao apoio do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), braço oficial que mantém sob rédeas curtas os centros de tradições gaúchas.
Desde que foi fixada por Barbosa Lessa e Paixão Cortes, a música gauchesca – originária basicamente da península ibérica – tem servido principalmente como correia de transmissão do conservadorismo político. Cevados por verbas públicas e patrocínios privados, os festivais foram mananciais de revelações artísticas. Apresentando-se como dissidência renovadora do tradicionalismo, o nativismo ampliou e aprofundou seus temas com letras ousadas, melodias ricas e arranjos criativos, mas manteve o gaúcho campeiro como tema central. Agricultor é quase invisível na Califórnia. O trabalhador urbano pouco aparece. Ninguém sabe onde a onda dos festivais vai dar. “O modelo de festival está vencido, mas o nativismo está vivo”, disse o cantor Luiz Carlos Borges ao JC em 2019. “A busca das raízes é um tema recorrente no Rio Grande do Sul”, afirma Vinicius Brum, lembrando o sucesso do livro de contos No Galpão, de Darcy Azambuja, premiado em 1925 pela Academia Brasileira de Letras.
Escapando da ditadura
Lourival Araujo Gonçalves, médico formado em 1975 em Porto Alegre, fixou-se em Uruguaiana no início dos anos 1980. Depois de ter participado algumas vezes como músico, integrou a comissão organizadora da Califórnia, exercendo a presidência por vários anos – o último em 2002. Apesar das dificuldades econômicas e divergências político-ideológicas sobre os rumos do festival, ele acredita que a Califórnia tem condições de prosseguir, desde que conte com o apoio das leis de incentivo à Cultura para contornar a falta de patrocinadores comerciais e de apoio de algumas administrações municipais. “A Califórnia sempre foi aberta, de frente para o futuro, ao contrário do tradicionalismo”, afirma Gonçalves. Ele lembra que Uruguaiana acolheu os músicos urbanos que, cerceados pela ditadura militar, aderiram ao festival onde “podiam dizer suas verdades”. Na 17ª Califórnia, transmitida ao vivo pela TV Bandeirantes, o folclorista Barbosa Lessa, atuando como comentarista ao lado de José Fogaça, chegou a reclamar do excesso de liberdade de criação de alguns artistas. Os tradicionalistas também torceram os bigodes para certas liberalidades da Cidade de Lona, onde chegou a se estabelecer um clima de festival hippie dos Estados Unidos.
Há anos, Gonçalves defende uma mudança de modelo do festival, que a seu ver deveria ser “menos competitivo e mais uma mostra da nossa música” – sem cortar o acesso aos novos, claro. A referência seria o festival de Cosquín, criado há mais 60 anos na Argentina. Não se espere uma mudança da noite para o dia. A renovação da Califórnia é lenta e gradual, pois depende da direção do CTG Sinuelo do Pago, que já marcou a data para a edição de 2022: de 7 a 9 de dezembro, “na última lua cheia” do ano.
Um caso único de censura
Em 1984, ao chegar a Uruguaiana, o compositor argentino Talo Pereyra foi detido por porte de maconha. Foi solto em seguida, mas ficou no ar o aviso: a Polícia Federal estava de prontidão para agir contra quaisquer atentados à ordem e aos bons costumes.
Nas duas primeiras noites dedicadas à escolha dos 12 finalistas, tudo correu bem. Na última noite, aconteceu o inesperado: o compositor Raul Ellwanger foi proibido pela Censura Federal de defender sua canção, Chimarrita do Capaz, cuja letra criticava “esse paulista das Arábias” — Paulo Maluf, não citado nominalmente, mas protegido pelo governo como candidato oficial nas eleições indiretas de 1985 vencidas por Tancredo Neves.
Calejado por anos de exílio nos países vizinhos, Ellwanger ficou no palco e cantou (a capella) — sem acompanhamento instrumental — o clássico Volver a los diecisiete, da chilena Violeta Parra. Depois, na sequência da noitada, no acampamento da Cidade de Lona, a canção proibida foi cantada em coro pela rapaziada livre da vigilância policial. No ano seguinte, a Chimarrita foi levada a outro festival pelo cantor Neto Fagundes, mas sem sucesso: sua mensagem já estava vencida.
Esse causo está registrado em três páginas do livro Na Velas do Violão (2016) em que Ellwanger conta a gênese de suas canções.
Vacas magras
Desde o ano passado, entrou em ação na Califórnia da Canção Nativa uma nova equipe executiva liderada pelo uruguaianense Maxsoel Bastos de Freitas, advogado, 49 anos, sócio da produtora Vozes do Sul ao lado de Tatiana Tetzlaff. Em 2020, sua canção Guria (“resposta ao Guri“, ganhador da 13ª Califórnia) ficou com a Calhandra de Prata. Em 2021, sem ajuda federal ou recursos captados via leis de incentivos culturais, o evento foi realizado com R$ 240 mil contando com a ajuda da prefeitura, da Secretaria Estadual de Turismo e de uma dezena de patrocinadores locais. Nesse valor, estava incluída a ajuda de custo de R$ 2 mil a cada um dos 24 classificados, aos cinco jurados e os prêmios aos vencedores: R$ 10 mil ao ouro, R$ 5 mil a prata, R$ 2,5 mil ao bronze e R$ 1 mil aos destaques individuais (intérprete, letra, melodia e a mais popular).
Esses são os valores do “tempo das vacas magras”. Nos “anos dourados”, a bilheteria, o aluguel de espaços na Cidade de Lona e patrocinadores garantiam os recursos para custear prêmios e a vinda de artistas convidados. Em 1980, houve até o sorteio de um carro. Radialistas e jornalistas acorriam para transmitir as três noitadas; houve anos em que o espetáculo transmitido pela TV Band ensaiou virar sucesso nacional. Não virou. Prevaleceu o isolamento geográfico do Rio Grande do Sul, mantido à margem do mercado nacional por uma sutil aliança entre a indústria fonográfica de São Paulo e a máquina da mídia ancorada no Rio, a ‘capital cultural’ do País, promotora do samba como carro-chefe da música popular brasileira. Para abrir caminho para o baião, o pernambucano Luiz Gonzaga precisou se estabelecer no Rio, sede da Rádio Nacional, nos anos 1940. A mesma regra valeu até para o catarinense Pedro Raimundo, que chegou ao à capital fluminense pilchado como gaiteiro gaúcho cantador de rancheiras. Idem para os baianos Caetano e Gil. E os cearenses Belchior e Fagner.
Jeronimo Jardim, premiado e vaiado
Depois de voltar do Rio, onde viveu por quatro anos e ganhou um festival com a canção Purpurina — seu batismo na escuta de vaias –, o bageense Jeronimo Jardim compôs a canção Astro Haragano, cuja letra recordava a passagem do cometa de Halley. Na noite de 7 de dezembro de 1985, no palco ao ar livre da XV Califórnia da Canção Nativa em Uruguaiana, o artista apresentou uma de suas melhores obras musicais.
Astro Haragano (Jerônimo Jardim) É fogo, é gelo, verdade, ilusãoVento de prata/escarcéuVarando a noite campeirarepontando estrelasna estância do céuChispa de sonho, galope de luz, mistério na imensidãopingo tordilho cigano qual boitatá na escuridãoAstro haragano esperança fugaz passando em meu coraçãode encontrar meu meninotropa de ossoroda piãoroda pião;
Com acordes dissonantes e um arranjo sofisticado, Astro Haragano foi recebido em silêncio pelas 15 mil pessoas presentes na Cidade de Lona, a seis quilômetros do centro de Uruguaiana. “Cadê a gaita?” “Cadê a bombacha?”, disseram alguns descontentes perto do palco. Quando Jardim foi eleito o vencedor, uma vaia deu origem a um bochincho que se estendeu até de madrugada. Um grupo cercou o palco, exigindo que o compositor devolvesse a Calhandra de Ouro. Somente de madrugada, ele saiu da Cidade de Lona escoltado por dois brigadianos. Acabou indo dormir na casa de amigos, pois também no hotel os revoltosos queriam “pegar o atrevido”. Depois desse estresse, Jardim ficou oito anos sem subir a um palco, seu habitat predileto ao longo da vida. Só reassumiu a vida de artista em 1993, quando sua milonga Portal ganhou um festival na voz de Muni.
Tropa de osso x Esquilador
Em julho de 1979, trabalhando como instrutor musical na Biblioteca Pública de Santa Maria, o músico Luiz Carlos Borges recebeu uma letra do advogado Humberto Zanatta (1948-2018), que o desafiou a criar uma melodia para concorrer na Califórnia daquele ano. Somente às vésperas do prazo de inscrição (30 de outubro), Borges terminou de compor a melodia de Tropa de osso. Na noite de 13 de dezembro, garantiu sua presença na final de domingo (e no disco do ano). No domingo, com a voz rebaixada pelas noites mal dormidas, defendeu a milonga cujo refrão já estava na boca do povo: “Tropa de osso quem não teve quando piá/ Ou não foi piá ou não viveu como nós outros”.
Tocando violão e usando uma boina emprestada pelo historiador Tau Golin, Borges ganhou a Calhandra de Prata, deixando escapar o ouro para Esquilador, mazurca de Telmo de Lima Freitas, dublê de gaiteiro e policial, cuja letra evoca a esquila manual de ovelhas, substituída pela tosquia mecânica, uma das fontes de desemprego rural.
Os maiores sucessos da Califórnia
(entre mais de 500 finalistas)
Pedro Guará Claudio B. Garcia e José Claudio Machado (1972)
Gaudêncio Sete Luas Luiz Coronel e M. A. Vasconcellos (1972)
Negro da Gaita Gilbérto Carvalho e Airton Pimente (1977)
Tropa de osso Humberto Zanatta e Luiz Carlos Borges (1979)
Esquilador Telmo de Lima Freitas (1979)
Semeadura José Fogaça e Vitor Ramil (1980)
Desgarrados Sergio Napp e Mario Barbará (1981)
Recuerdos da 28 Francisco Alves e Knelmo Alves (1980)
Veterano Antonio Carlos Ferreira e Ewerton Ferreira (1980)
Tertulia José Moreci Teixeira “Leonardo” (1982)
Guri JB Machado e Julio Machado da Silva Fº (1982)
Romance na Tafona Antonio C. Machado e L.C. Borges (1980)
Não Podemo se entregá pros Home Humberto Zanatta, Francisco Alves e Francisco Scherer (1982)
Fonte: Jornal do Comércio