Reflexão – Por que cantamos?

Por: Renato Ferreira Machado

Ao apresentar o Capitão Rodrigo na imortal obra O Tempo e o Vento, Erico Veríssimo o descreve da seguinte maneira: 

“Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira”.

Rodrigo Cambará era um soldado, voltava de mais uma entre tantas guerras em que havia lutado… e trazia um violão a tiracolo. Por que? Com tantas coisas para se preocupar, que motivo teria um veterano de guerra para trazer um violão junto à sua espada?

Herdeiros da racionalidade moderna que somos, estamos sempre inclinados a nos questionarmos sobre a utilidade das coisas. Ao seguirmos por esta linha, vamos acabar perguntando se, no final das coisas, cantar serviria para alguma coisa. Ou ainda, olhando para o Capitão Rodrigo Cambará com este raciocínio, nos causasse estranheza que ele carregasse um violão, quando poderia ter, no lugar do instrumento musical, mais uma arma que o defendesse em campo de batalha. A resposta sobre a utilidade do canto é simples: cantar não serve para nada e nisso se encontra o valor do canto, da música e da arte em geral.

A estética, que se expressa em todas as artes, se encontra em um outro nível de relação com a vida humana. Se a vida fosse composta apenas pelo utilitário e pragmático a consequência disso seria a gradativa perda de nossa humanidade, pois tornar-se humano significa, antes de mais nada, perguntar-se pelo sentido último daquilo que se vive a cada dia. Este sentido perguntado diante do cotidiano é muito maior que nossa racionalidade. Ele não é explicável ou mensurável. O sentido é experimentado na vida, com a totalidade do nosso ser. Isso nos leva de volta ao canto.

A experiência de sentido só pode ser comunicada de uma forma: simbolicamente. É disso que nasce a arte em si. A arte, em suas diversas expressões, é uma linguagem simbólica através da qual comunicamos o sentido daquilo que vivemos e daquilo que esperamos viver. O fato de um soldado como Rodrigo Cambará levar um violão consigo nos fala que, talvez, entre tanta morte e violência, este personagem tinha no instrumento musical a única arma que o defendia de uma vida sem sentido. Por isso ele canta sua valentia e principalmente seu amor pelas mulheres. Ele está dizendo ao mundo, no seu cantar, que existe e deseja viver. Rodrigo Cambará é um gaúcho e gaúchos são aqueles que “cantam tristes”. Sim: na própria palavra que nos localiza no mundo se encontra o canto. Quem conhece a lenda de onde surge este significado para a palavra “gaúcho” sabe que este canto é a última expressão de vida que se coloca diante da morte.

Em nossa história temos o canto sempre presente. Cantar é nosso jeito de dizer que estamos vivos. Herdamos a milonga de Ezeiza e expressamos nossa alegria com Pedro Raymundo. Reencontramos nossos cantares folclóricos e ancestrais com Paixão Cortes e Barbosa Lessa e cantamos a vida do povo com Gildo de Freitas e Teixeirinha. Em momentos de luta pela identidade e pela identidade, entoamos nossos cantos junto à América Latina nos festivais nativistas. E hoje continuamos cantando nosso ser e estar no mundo a partir do lugar onde vivemos. Para quê? Para afirmar que somos.

Da mesma forma que Rodrigo Cambará, continuemos nossa marcha com o violão a tiracolo.

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