Reflexão – Cultura

Por: Renato Ferreira Machado

A palavra “cultura” tem uma história. Conhecer essa história pode nos ajudar na compreensão daquilo que julgamos ser “cultura”. O etnólogo francês Denys Cuche, em seu livro “A noção de cultura nas Ciências Sociais”, lançado pela EDUSC em 1998 nos apresenta uma espécie de cronologia de significados, compreensões e aplicações do termo. Em nosso texto vamos seguir por sua abordagem.

O primeiro registro do termo se dá na antiguidade, em Roma. “Cultura”, naquele contexto, surge como uma palavra ligada às técnicas de cultivo do solo. Conhecer as sementes, os solos, as épocas de plantio e colheita era praticar a “cultura”.

Ao longo dos anos, naquele mesmo contexto, “cultura” começa a ser um termo utilizado como uma metáfora. Ela se refere ao ato de transmitir conhecimentos e tradições aos mais jovens. Da mesma forma que sua acepção original agrícola, a palavra era utilizada como um ato e não como um conteúdo.

Na França do Século XVI, “cultura” é uma palavra utilizada para descrever o ato de desenvolver determinadas habilidades e talentos. É na França, aliás, que a circulação desta palavra levará ao sentido que hoje utilizamos para ela. Este é o contexto no qual a “cultura” será tomada como metáfora: do cultivo da terra se passará ao cultivo do espírito.

No Século XVIII a palavra “cultura” passa a ter algumas associações descritivas de sua ação. Passa-se a falar em “cultura das artes”, “cultura das letras”, “cultura das ciências”, numa tentativa de explicar em que campo do saber acontecia aquele cultivo intelectual. A palavra circula pelo ideário iluminista, onde ela perde seus complementos e passa a ser autodescritiva: “cultura” é o termo que vai se utilizar para designar a formação e educação do espírito. Na sequência o termo passa a ser tomado como a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade ao longo da história.

É interessante perceber como esta metamorfose no significado e no emprego da palavra “cultura”, via de regra, sempre a trouxe no singular. Não é por acaso: o ambiente iluminista francês toma esta palavra como descrição de um conjunto universal de saberes humanistas, associada ao progresso, educação, ciências e todo o repertório que compunha a ideologia iluminista. Nesse sentido, “cultura” é algo também associado a uma utopia, na qual a humanidade progride e se aperfeiçoa através da ciência, da educação e das artes, ou seja, através da “cultura”. Neste contexto, “cultura” passa a ser associada ao termo “civilização” e, com isso, se configura uma espécie de modelo universal a ser aplicado à toda humanidade. E neste ponto começamos a ter problemas com estes dois termos.   

A noção iluminista de cultura e civilização trazia, em si, a compreensão de que existiria um modelo universal destes dois termos. Isso ocasionou sua utilização como uma espécie de “régua” através da qual se passava a medir o quanto determinado grupo humano seria ou não “civilizado” ou “culto”. As consequências práticas desse ideário se expressam em todo colonialismo exercido sobre povos originários de diversas partes do mundo. Isso significa que, em nome de uma suposta cultura e civilização universais, diversas culturas e civilizações locais não foram reconhecidas como tais e caminharam quase para uma extinção. E aqui não me refiro apenas a povos originários, mas também às culturas populares que em muitas ocasiões não tem suas expressões, hábitos e costumes reconhecidos como legítimos. É a partir deste ponto de vista que se solidificam e naturalizam preconceitos e violências simbólicas que atingem as pessoas mais fragilizadas socialmente. E diante disso, cabe a pergunta: é possível superar esta visão universalista e colonialista de cultura, buscando reconhecer aquilo que cada povo “cultiva” como visão de mundo? Quais são os caminhos para isso?

Voltaremos ao assunto na semana que vem.

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