Reflexão – Ano Novo, tempo de Reflexão!

Por: Renato Ferreira Machado

A vida é uma realidade que atinge o ser humano de forma bastante diferenciada. Temos consciência de estarmos vivos, temos consciência de que a morte inevitavelmente virá, temos consciência do tempo que passa. Talvez esta seja nossa maior dádiva e nossa maior maldição: vivemos e morremos como qualquer outro ser vivo, mas sabemos disso e não sabemos o que fazer com isso.

Aliás, sabemos, sim…

Diante desta realidade que se revela ao longo da existência, a mais humana das atitudes tem sido a reflexão.

“Para fugir à tristeza,/ por buscar esquecimento,/ desejei ser como o vento/ que vai passando sozinho,/ sem repisar um caminho,/ sem conhecer paradeiro.”

Assim se inicia a imortal composição de Júlio Machado da Silva Filho e Colmar Duarte, a primeira das canções nativistas, intitulada simplesmente de “Reflexão”. O refletir proposto na música vai exatamente ao encontro do que estamos abordando: para fugir à tristeza ou buscar esquecimento, ou seja, não se “pré-ocupar” com aquilo que não podemos resolver. Inicialmente, uma reflexão em tom de negação ou fuga, onde se deseja ser como o vento, que passa e não conhece paradeiro.

Partir… deslocar-se… Sempre temos estas tentações e inclinações diante dos problemas. Nesse sentido, o ano que findou parece ter vindo como uma lição sobre isso: não pudemos partir ou nos deslocar. Precisamos, sim, ficar em nossos paradeiros e encarar vários problemas de frente.

“Quis ser nuvem ao pampeiro,/ ser a estrela que fulgiu,/ quis ser as águas do rio/ fazendo inveja às areias,/ em seu eterno viajar!”

Quando a fuga ou negação dos problemas não é movida por medo, ela pode ser movida por um enganoso complexo de superioridade. Assim segue a composição de Reflexão, colocando agora estas metáforas do que “passa” em uma relação messiânica com aquilo que “fica”: a nuvem que vai adiante do vento pampeiro, a estrela, distante, que brilha para que todos admirem, as águas do rio, que passam, enquanto a areia permanece. O ano que findou parece também ter sido um tempo no qual estas atitudes acabaram sendo desconstruídas. Com o “permanecer” compulsório que vivemos em 2020, as águas correntes do rio é que passaram a ter inveja das areias que ficam, pois, no fim, tudo se encaminhou para a revelação do quanto é importante simplesmente ficar.

No contexto em que a música “Reflexão” foi composta, ainda no início da década de 1970, um dos dilemas da cultura regional era exatamente o “partir” ou “permanecer”. Em uma época na qual se vivia a crise entre a censura imposta pela ditadura e os protestos nas músicas dos festivais latino-americanos, quando compositores regionais do Rio Grande do Sul tentavam levar suas músicas para o Rio de Janeiro e São Paulo e artistas populares gaúchos, com suas melodias e composições simples se tornavam conhecidos em todo o país, “Reflexão” parecia perguntar sobre o que fazer naquele momento. O fato dela ter sido a primeira grande vencedora do maior festival de música regional que o Rio Grande do Sul já teve, a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, é algo bastante emblemático, pois a música nativista, que ali nascia, apresentava uma solução existencial para este dilema.

“Um dia cansei de andar/ e desejei novamente,/ em vez de rio ser barranca,/ em vez de vento, moirão,/ em vez de nuvem, semente,/ em vez de estrela, ser chão!”

A questão não estava no “partir” ou “ficar”, mas no sentido de uma atitude ou outra. Se a decisão era ficar, como a composição deixa claro, então era necessário que esta permanência acrescentasse algo ao lugar onde se estava ficando e quem já estava por lá. Por isso, era preciso ser barranca, que acolhe, absorve e direciona as águas do rio que passa. Era preciso ser moirão, marcando limites na terra e retendo do vento, que não conhece limites, apenas a música. Era preciso tornar-se semente, absorvendo as águas das chuvas que despencam das nuvens, para rebrotar no chão sob as estrelas. 

Este foi o caminho tomado por nossa música regional a partir dos festivais e isso tem muito a ver com a experiência que tivemos como humanidade no ano que se encerrou.

Em uma realidade sempre “de passagem”, montada dia-a-dia com selfies em paisagens “instagramáveis”, voltamos para casa, talvez sem saber muito bem o que fazer por lá. Para muitas famílias foi um tempo de convivência como nenhum outro, com manhãs, tardes e noites de convivência, cafés-da-manhã, almoços e jantares ao redor da mesma mesa, com pais e filhos juntos o tempo todo. Talvez 2020 tenha sido o tempo de nos descobrirmos como barranca, moirão, semente, chão. 

Talvez, por isso, o ano que passamos possa ser sintetizado neste verso:

“Recém então aprendi/ que muita gente maldiz/ sua sorte – insatisfeita/ por não saber que é feliz.”

Mas estamos iniciando um novo ano. Os grandes problemas do ano passado ainda não estão resolvidos, porém, há esperanças concretas no horizonte. Como e quando as coisas vão ocorrer não é algo que esteja sob nosso controle, ainda que, na condição de cidadãos e cidadãs nos caiba como direito e dever fiscalizar e reivindicar ações assertivas dos poderes constituídos para a resolução dos problemas que nos atingem. O que está inteiramente em nossas mãos, por outro lado, é aquilo que faremos com a realidade que estamos vivendo.

“E nunca mais invejei/ o destino das estrelas,/ que só enfeitam a noite/ porque o sol não pode vê-las;/ as nuvens que submissas,/ vão onde o vento as levar/ e o vento que passa triste/ porque não pode voltar!”

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