Reflexão – A Noite

Por: Renato Ferreira Machado

“Assim, da curiosidade dos homens nasceu a Noite. E a própria Noite, com a aquietação, com as vozes veladas que se fazem mais audíveis, se transformou na maior alimentadora da curiosidade dos homens. Pois é ao crepitar do fogo doméstico, nas horas noturnas de descanso, que os índios e os gaúchos perguntam a si mesmos e aos outros o porquê das coisas.”

(Como surgiu a noite – Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul. São Paulo: Literart, 1960)

Lendas são expressões da memória e da sabedoria popular. 

Surgem da intuição e da experiência e tentam dar conta de explicar os motivos de pensarmos ou agirmos de uma forma ou outra a partir de algo que revele o sentido do que fazemos. Lendas surgem de perguntas. Geralmente de perguntas feitas pelos mais novos para os mais velhos. 

Lendas não tem autoria, a não ser a própria vida do povo.

Ao abrirmos nossa conversa de hoje com um trecho de uma lenda – recolhida e registrada de forma escrita – queremos expressar a intenção de desvelar a sabedoria e a experiência popular sobre o assunto que propomos: a Noite.

A noite nasceu da curiosidade dos homens! 

A lenda a que nos referimos se inicia afirmando que havia apenas a claridade e que um dia (nas lendas sempre existe “um dia” a partir do qual tudo muda), um índio encontrou um caroço. Levando o caroço ao ouvido escutou um mundo de coisas que nunca havia escutado na claridade: sapos, rãs, grilos, aves noturnas. Havia um universo dentro do caroço, um universo a ser libertado: o universo da noite! O caroço é quebrado pelo índio e a noite avança sobre o mundo! A claridade enfraquece, aquilo que se enxergava fica invisível, escutam-se barulhos de bichos e insetos, dos ventos e das árvores, porém nada disso se consegue enxergar.

A partir deste ponto a lenda poderia tomar duas direções. Ela poderia dizer que este universo de escuridão havia assustado os homens e que estes buscaram suas casas para se abrigar até que a claridade voltasse. Isso explicaria porque as pessoas trabalhavam durante o dia e voltavam para casa à noite. Ou, ainda, ela poderia dizer que em meio a todo aquele breu, sem conseguir enxergar direito, os olhos dos homens começaram a pesar e que eles, pela primeira vez, dormiram, despertando apenas quando a claridade voltou.

Mas a lenda não toma nenhuma destas duas direções. 

Sua conclusão é outra, muito diferente.

Ela conclui afirmando que a noite é o tempo em que, ao pé do fogo, os índios e os gaúchos se perguntam o porquê das coisas.

Quando o europeu chegou à Abya Yala, o lugar que mais tarde ganharia o nome de América Latina, sua impressão foi a de estar entrando em um verdadeiro pesadelo: o calor tropical, as selvas fechadas, as feras perigosas, os povos originários que lhes pareceram ameaçadores… Pisar neste continente era como deixar as luzes européias para trás e penetrar no breu de uma noite sem fim. 

Isso, porém, não se constituiu em problema ao longo da história latino-americana. Muito pelo contrário: nosso imaginário assumiu e absorveu a noite como paradigma de uma existência marcada pelo inusitado, pelo misterioso, pelo fantástico. 

A América Latina sempre se apresentou como um lugar para sentar-se ao redor do fogo e contar histórias que extrapolavam a visão de realidade trazida pela racionalidade européia. Este mundo noturno não se explicava pelo conteúdo das enciclopédias, mas pela boca dos antigos, que contavam a origem de tudo. Todo esse contexto foi se traduzindo nas releituras guaranis da arte barroca, no realismo fantástico de nossa literatura e nas narrativas cantadas em nossas regiões fronteiriças.

Aqui, neste lugar do mundo em que habitamos, a chegada da noite é como a boca de um bicho que a tudo engole. Ao cair da tarde entramos na “boca da noite”, deixando o dia para trás.

A noite no pampa é um tempo-espaço de solidão e encontro, de cegueira e de enxergar longe, de silêncio e cantares de bicho e de gente. É quando sorvemos nossas penas junto com o mate e recebemos de volta os fantasmas que vivem nos rondando. 

A noite pampeana é feita de rondas nas revoluções, de vigília nos carijos, de adeus nos velórios, de dança, briga e trago nos fandangos, de alegria para uns, de tristeza para outros.

Noite de estrelas que, longe, ficam tão perto, se banhando nas sangas e mostrando rumos ao andejo. 

Assim é com as estrelas do Cinturão de Orion, maiores que o Sol, que carinhosamente apelidamos de “Três Marias”. 

Assim é com a constelação Crux, que guia o tropeiro sob o nome de “Cruzeiro do Sul”.

Assim é com o planeta Vênus, símbolo universal do feminino, que aparece ao fim do dia e ao fim da noite: a estrela boieira que anuncia a radical mudança do claro para o escuro e do escuro para o claro, a nossa Estrela D’Alva.

Noite que se conta.

Noite que se canta.

Noite-Mistério, quando abrimos nossos olhos!

Ouça na íntegra o programa Reflexão:

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