Reflexão – O Tempo

Por: Renato Ferreira Machado

Somos o tempo./ Somos a famosa parábola/ de Heráclito, o obscuro./ Somos a água, não o diamante duro,/ a que se perde, não a que repousa.

Somos o rio/ e somos aquele grego que se olha no rio./ Seu semblante incerto/ se espelha na água mutante,/ no cristal que espelha o fogo trôpego.

Somos o vão rio predestinado,/ rumo ao mar. Pelas sombras cercado./ Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa./ A memória nos imprime sua moeda./ E no entanto há algo que se queda/ e no entanto há algo que se queixa.

(Son los Ríos – Jorge Luís Borges)

Estamos caminhando para o final do ano. 

Todo ano a gente fica falando que o tempo voou, passou muito rápido… 

E nesse ano? Como estamos sentindo a passagem do tempo em 2020? 

Aliás, o que faz a gente sentir que o tempo está passando? 

Como nos relacionamos com o tempo ao longo da vida?

Como percebemos o tempo?

No início de nosso texto encontramos este trecho de Son los Ríos, de Jorge Luís Borges. 

Nele, lemos: “tudo nos diz adeus, tudo nos deixa”… 

Assim sentimos o tempo, como um contínuo “deixar para trás olhando para a frente”. Tudo vai passando e ter consciência dessa passagem é um dos grandes dramas do ser humano. Mais dramático ainda é quando o tempo vai passando e mergulhamos num vazio de sentido, não diferenciando mais o valor daquilo que vivemos. Sobre essa questão encontramos uma bela reflexão  no clássico Cantiga de Eira, canção de Barbosa Lessa, que já ganhou diversas interpretações. Cantiga de Eira fala sobre o trabalho dos cavalos na eira, ou seja, em um “curral, pequeno e redondo”, onde os cavalos andam em círculos para debulhar o feijão ou outros cereais. Sempre andando e voltando ao mesmo lugar… 

Este pode ser o sentimento de muita gente ao longo da vida: o tempo passa e nada muda. 

Aliás, 2020 talvez seja um ano em que este sentimento acabe se tornando bastante forte. Afinal, temos a impressão de que tudo parou, mesmo sabendo que o tempo continua avançando. Andando nessa eira chegamos ao último mês do ano. 

“Ano”, aliás, é uma das muitas convenções que a humanidade adotou para marcar a passagem do tempo. 

Provavelmente a primeira ideia quanto à passagem de tempo que a humanidade teve foi a de que ele seria circular: tudo que aconteceu um dia, voltaria a acontecer de novo. Ao contrário da “eira”, porém, essa repetição era a segurança de que a vida estava seguindo seu rumo correto.

Há um momento de nossa vida em que sentimos o tempo mais ou dessa forma: a infância. 

Na infância, dias e noites se sucedem, mas parecemos estar sempre vivendo um grande instante presente. Cada momento é uma descoberta, uma novidade e, ao mesmo tempo, vivemos repetidas rotinas que vão  escrevendo a história deste tempo de nossa vida. A criança descobre coisas novas a cada instante e a cada novo dia que se inicia, a criança renova as expectativas na descoberta de novidades, ao mesmo tempo que fortalece sua segurança no universo das coisas que já são por ela conhecidas. A infância pode ser uma experiência de eternidade, quando vivemos a sensação de um tempo que não passa mas é sempre novo. O segredo da infância se encontra na ludicidade, na brincadeira, no jogo. É ali que a criança desenvolve e experimenta a própria identidade e aprende a conviver em sociedade, numa relação que vai amadurecer com o tempo, mas que se estende como se fosse eterna ao longo da própria infância. 

É claro que o tempo passa e a gente cresce. 

A infância fica para trás e ao mesmo tempo segue com a gente. 

Crescer, porém, não significa obrigatoriamente, nos tornarmos como os adultos que conhecemos na infância. 

É nisso que se estabelece o conflito ou diálogo entre gerações. 

Nosso estado tem em sua cultura o paradigma e o referencial da tradição, através do que se busca tornar sempre presente uma suposta identidade regional histórica. Onde se cultiva tradição sempre surgem questões a serem resolvidas entre diferentes gerações. Isso geralmente se dá porque a geração atual deseja viver seu tempo da maneira mais original possível e não ser, simplesmente, uma cópia das gerações anteriores. Por isso, é preciso compreender corretamente o que é tradição, pois tradição é uma forma de lidar com o tempo. 

A palavra tradição vem de “tradicere”, que significa “trazer”, em latim. 

Tradição, assim, é algo que alguém nos entrega, nos deixando ao mesmo tempo um presente e uma responsabilidade. Por isso, antes de terem uma obrigação para com a tradição, as novas gerações têm direito à tradição: é através dela que tomarão contato com a memória cultural organizada na sociedade onde vivem. A grande questão sempre acaba sendo: como se apropriar da tradição mantendo o equilíbrio entre o que foi construído e as demandas dos tempos atuais? 

O segredo se encontra em revisitar a experiência de onde a tradição surgiu. 

Através do contato com a experiência original da tradição uma nova geração pode atualizar esta mesma tradição recebida através de seus questionamentos e anseios. Tradições não tem continuidade apenas com a simples cópia do que foi feito. Assim se renovam as práticas e hábitos de um povo ao longo do tempo. 

A tradição pode ser uma forma de “laçar o tempo”, de se conservar para além da passagem do tempo. 

Mas a gente só consegue acertar o laço se algo como a tradição nos proporcionar um sentido para a vida. 

A palavra sentido pode ter dois significados: pode ser direção e pode ser experiência. Os dois significados  se complementam. A vida precisa de uma direção e precisa ser uma experiência que tenha sentido. E ter sentido significa transcender e ultrapassar o tempo. Onde podemos encontrar estas questões?

Aqui se encontra uma questão importante: nosso amadurecimento ao longo do tempo precisa nos levar a uma compreensão integral de nossa própria identidade. Somos tudo aquilo a que estamos ligados, desde antes de nossa existência. Nossa identidade é uma ressonância de todas as nossas relações. Todos que existiram antes, existem em nós e, potencialmente, existimos nos que virão depois. 

Da mesma forma, o tempo também nos conecta aos lugares onde vivemos e nossa histórias nestes lugares através da memória. Se uma casa que já habitamos se tornou uma tapera, nossa história e nossa memória conferem um espírito à tapera, transcendendo a matéria e possibilitando que nela reconheçamos a velha casa que habitamos. Algumas concepções de “espírito”, aliás, dão conta de que espírito seja algo semelhante a uma morada, onde habitam nossas memórias, nossos símbolos, nossas experiências. Ou seja: espírito é o lugar onde habita o sentido do tempo.

Todos teremos um último dia, assim como tivemos um primeiro dia. 

Neste ano, infelizmente, muitas pessoas tiveram seu último dia adiantado graças à doença que estamos enfrentando. 

O fato é que todos morreremos um dia e saber disso é o drama do ser humano. 

Quando nosso tempo chega ao fim, provavelmente passemos por um momento de revisão de todas as coisas vividas. Uma revisão do tempo que tivemos e que será muito mais abrangente do que simplesmente admitir o que supostamente fizemos de certo ou errado. Será  a revisão daquilo que vimos, que testemunhamos no tempo em que vivemos, de tudo que presenciamos sobre a terra. E se morremos sem poder ter resolvido tudo, pelo menos morremos na esperança de que um dia a justiça será feita.

Ouça na íntegra o programa Reflexão:

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