Reflexão – O Sul

Por: Renato Ferreira Machado

O norte fica acima e o sul fica abaixo? 

Estamos acostumados a enxergar dessa maneira nos mapas e nas representações do globo terrestre. Na verdade, sendo o planeta redondo e estando no espaço, não há “acima” ou “abaixo”, apenas distâncias entre os lugares. A convenção de colocar o norte acima nos mapas vem principalmente do tempo das grandes navegações, quando as viagens marítimas eram orientadas pela Estrela Polar. 

Em 1943 o professor, pintor, escultor, escritor e ilustrador uruguaio Joaquín Torres García lançou uma obra que ficou conhecida como “América Invertida” ou, como hoje é chamada, “Mapa de Torres García”. Trata-se de um desenho a tinta onde a América Latina aparece apontando para cima, ou seja, no lugar onde geralmente se encontra o norte. 

Torres García descreveu o significado de sua obra dizendo: 

“Nosso norte é o sul. Não deve haver norte para nós, exceto em oposição ao nosso sul. Portanto, agora nós viramos o mapa de cabeça para baixo, e então temos uma ideia verdadeira de nossa posição, e não como o resto do mundo deseja. O ponto da América, de agora em diante, para sempre, aponta insistentemente para o sul, nosso norte.”

Historicamente o Sul sempre afirmou sua identidade a partir de sua diferenciação quanto ao Norte.

Sul e Norte são como dois lados de uma moeda ou imagens refletidas no espelho, onde um enxerga o outro de maneira inversa. 

Essa duplicidade, que em alguns aspectos pode chegar ao antagonismo, não diz respeito apenas a uma questão geográfica ou a alguma disputa entre países. Ela se refere a uma disputa cultural que envolve duas cosmovisões diferentes. 

Pode-se dizer que o marco inicial desta disputa é a Guerra Hispano-Americana, ocorrida em 1898.

Em um confronto bélico entre Estados Unidos e Espanha, com derrota da Espanha, as colônias espanholas de Cuba, Porto Rico e Filipinas passam a pertencer aos Estados Unidos. O enfraquecimento do domínio espanhol passa então a alimentar o sonho de unidade e autonomia na América Espanhola, que passa a se denominar como América Latina. 

Cresce, com isso, um imaginário de liberdade que entrará no Século XX reconhecendo todas as lutas por independência como uma herança ancestral, que vai muito além das disputas econômicas e políticas de nosso tempo. 

Uma herança que leva à descoberta do Sul não como um lugar, mas como um caminho existencial.

Nesse sentido, é interessante pensar que quando alguém não sabe mais para onde ir, costuma-se dizer que a pessoa ficou desnorteada, que perdeu o Norte. E perder o Sul, o que seria?

Ao visitarmos a literatura e o folclore argentino, por exemplo, pode ser que cheguemos à conclusão que “perder o Sul” seja o equivalente a perder a alma, pois é no Sul que se encontram as origens de tudo que existe. Borges, por exemplo, sempre vai se referir ao Sul como o bairro antigo, como o lugar da marginalidade e da coragem. E quando Borges, em suas narrativas, sai da metrópole, o Sul se torna o lugar do contraste, do duplo. Se a cidade é civilizada, o Sul é selvagem; se a cidade é cheia de prédios, o Sul tem horizontes abertos; se a cidade é regrada por leis, no Sul as coisas acabam se resolvendo com duelos de adagas. 

O Sul é o lugar para onde se vai “com a alma cheia de gente”, conforme diz a música de Mauro Moraes e isso tem muito a ver com toda essa utopia latino-americana: em cada um de nós, em cada pedra, planta e caminho, em cada bicho, moram almas ancestrais. Almas de uma terra antiga, que nos chama pelo nome e nos envia por seus caminhos. 

Mas será que existem ainda esses caminhos? 

Esta é uma questão que nos leva de volta ao início deste texto: o Sul existe na oposição com o Norte. Mas este Norte não é um país ou um continente. Não é uma simples oposição de geografias. O Sul se opõe ao Norte como visão de mundo, como modo de viver. É uma oposição entre superficialidade e profundidade, entre diversidade e uniformidade, entre ter e ser, entre mecânica e espírito. 

Este Sul, mesmo não nomeado desta forma, que parece se perder no tempo e na história, tem a ver com qualquer parte do mundo que esteja se perdendo quando lucro e produtividade são colocados acima das pessoas. Tem a ver com qualquer lugar que tenha sua autonomia negada em nome de supostas superioridades econômicas. 

Por isso, o Sul não é um lugar. 

O Sul somos nós e nós somos fruto de todos que procuraram o seu Sul. 

E se o Sul nasceu exatamente dos projetos exploradores das potências da época das grandes navegações, ignorando toda a cultura dos povos originários, impondo um modelo de civilização sobre essas terras, talvez o tempo venha trabalhando em reencontros. 

As origens mestiças ocorridas no Sul provocaram a busca por raízes e desta busca foi nascendo uma outra identidade, uma outra visão de mundo. Isso nos leva ao de volta ao mapa de Torres-García, o mapa invertido que coloca o Sul como Norte. Ou melhor: o Sul como Sul. 

Isso nos revela que há muitos Suis em toda a Terra. 

Que, onde quer que exista um povo que redescubra sua própria fala e tome nas próprias mãos a sua história, lá é o Sul. Descobrir-se no Sul significa saber que é possível que sejamos nosso próprio ponto de referência, não mais periferia de outra história, mas protagonistas de nossa própria história.

Por fim, podemos dizer que O Sul se oferece a nós e nós nos oferecemos ao Sul. 

Conhecemos o Sul e o Sul nos conhece. 

Esse segredo do Sul é o Mistério, diante do qual não temos palavras. 

Apenas contemplamos e vivemos. 

De tudo isso sabemos. 

Se não sabemos, a terra sabe. 

O Sul sabe.

Ouça na íntegra o programa Reflexão:

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