Reflexão – O Pampa

Por: Renato Ferreira Machado

Até que ponto é possível definir um povo através do lugar em que este povo habita? Quanto de rio existe no povo da região amazônica? Quanto de caatinga existe no povo nordestino? Quanto de pampa existe em quem vive no pampa?

O pampa é um bioma presente apenas nesta parte do Brasil e ocupa 63% do território do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, ocupa parte do território argentino e se constitui na totalidade do território uruguaio, ignorando as fronteiras políticas entre esses países. A palavra pampa vem do Quíchua e significa planície. Mais do que um bioma e para além da descrição técnica, porém, o pampa é o lugar imaginário de onde emerge a figura do gaúcho. É a partir do pampa que esse tipo humano busca na cultura e na literatura universal seu lugar próprio e de direito. Desde que surge, em prosa e poesia, o gaúcho é descrito a partir do pampa e o pampa a partir do gaúcho.

Por isso, encontramos versos como os que dizem “Payador – pampa e guitarra,/ guitarra – payador – pampa/ três legendas de uma estampa/ onde a retina se amarra.” Assim começa Payador, Pampa e Guitarra, poesia de Jayme Caetano Braun que apresenta três elementos épicos de nossa cultura: o lugar em que habitamos, nossa identidade e o instrumento de nossa expressão. E quando, no poema, Jayme Caetano Braun fala de “três legendas de uma estampa”, conscientemente ou não ele está descrevendo a própria formação de um símbolo. A palavra símbolo significa “lançar junto” ou “reunir o que está separado”. Segundo essa poesia, então, ao olhar para o pampa, veremos o payador e ele certamente estará com seu violão. Essa estampa se refere a todos que habitam essa parte do mundo, saibam ou não essas pessoas compor versos ou tocar violão, vivendo ou não na região do bioma pampa. Trata-se de uma composição imagética que remete à formação humana do país da solidão do qual fala Barbosa Lessa em alguns de seus escritos ao se referir ao Rio Grande do Sul: lugar das lonjuras e gritos sem ressonância. Lugar de muitos silêncios.

Por que enxergamos o pampa desse jeito? Muito da visão sobre algum lugar  surge da relação que as pessoas estabelecem com este lugar. Uma relação elaborada pela maneira como os sentidos humanos traduzem o ambiente, mas também através do trabalho que o ambiente exige para que se possa nele sobreviver. Portanto, a visão que se tem de um lugar nasce da cultura, o mais precioso fruto do trabalho. Então, é a partir deste processo que vai nascendo nossa visão do pampa e do próprio gaúcho. E quem é esse tipo humano ligado a este bioma? É alguém reconhecido por um apego incondicional ao seu chão e que tem neste chão, o pampa, o lugar que lhe apresenta desafios, lhe acena com a liberdade e provê sua saciedade. O descampado e a imensidão do pampa, cruzados a galope por esse gaúcho, sem rumo certo, fazem com que gaúcho e pampa se complementem, se desafiem e definam um ao outro nas  mudanças necessárias para que gaúcho e pampa continuem sendo eles mesmos.

Por outro lado, se o pampa parece fixar uma identidade imutável é importante lembrar que historicamente este foi um dos lugares do país que mais passou por contínuas mudanças. As fronteiras do Rio Grande do Sul foram móveis por muito tempo exatamente porque sobre o pampa se deram as lutas entre a Coroa Portuguesa e a Coroa Espanhola na disputa por territórios nesta região do continente americano. Pampa adentro, por outro lado, foram as charqueadas, com seu poderio político e econômico que alimentaram a visão da cultura gauchesca que acaba predominando em nossa literatura e na cultura geral do estado. Interessante lembrar, nesse sentido, que no final do Século XIX, quando ocorre a decadência econômica das charqueadas frente à indústria do charque dos países do Prata, a literatura regional do RS responde a isso confrontando o gaúcho riograndense com o gaucho platino. O gaúcho rio grandense é retratado como herói. O gaucho platino se torna o anti-herói. Um é o espelho do outro e o contrário um do outro. Um nega o outro para se afirmar. E o gaúcho rio grandense é tomado pela literatura do Rio Grande do Sul como “verdadeiro gaúcho” exatamente por carregar em si as características do pampa.

A década de 1930 vai trazer uma crise na identidade pampeana: a cidade se aproxima e vai invadindo o pampa, não necessariamente com prédios ou rodovias, mas com uma cultura que vai mudando as relações das pessoas com a terra. O êxodo rural é um tema recorrente na literatura regionalista desta época, assim como o foi no ciclo dos festivais. Isso acontece exatamente por mexer com essa forte construção identitária e ao mesmo tempo integrar um processo de empobrecimento no campo. Novos mapas e geografias se desenham sobre o pampa, que com a crescente urbanização do Século XX vai se transformando na lembrança de um tempo passado, quando supostamente o gaúcho vivia em harmonia com seu meio. A partir daí se cria um novo mito: o pampa continua sendo referência mesmo no contexto urbano, tornando-se uma marca existencial, um ponto de partida para compreender o ser humano desta parte do mundo.

Pampa: palco de conflitos, caminho de buscas infinitas, nascedouro e túmulo. Lugar onde se cruzam e se ignoram fronteiras. Lugar dos invernos longos e rigorosos, da solidão das lides campeiras e das rodas de mate ao final do dia. Nestes círculos atávicos repetimos à nossa maneira o que todos os povos do mundo certamente o fazem em outros ambientes. Ato e ritual que transmuta o ambiente em palavra, onde o pampa se transforma em narrativa.

Assim, reunidos ao redor do fogo, no cair da tarde, entrando noite adentro com seus contos e cantos, conversam os gaúchos sobre suas vidas. O centro universo se torna uma roda de mate ao redor do fogo, no meio de uma terra de horizontes sem-fim.

Lugar onde o vazio da imensidão faz eco para tudo aquilo que se traz dentro do peito.

Pampa.

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