Reflexão – O Mate

Por: Renato Ferreira Machado

O preparo e a degustação deste chá se encontra entre nossos hábitos alimentares há muitos séculos e teve sua origem entre o povo Guarani. Na cultura deste povo originário o mate é considerado uma dádiva de Tupã, que lhes deixa essa erva como revigorante e sinal de amizade, conforme temos relatado na lenda da Caá Yari

Nessa história, uma jovem guarani deixa seus interesses pessoais de lado para cuidar de seu pai, já idoso. Certa noite, ela e seu pai recebem a visita de um viajante e lhe dão pouso, acolhendo-o com o melhor que dispunham para acomodá-lo. Pela manhã, o visitante revela ser um emissário de Tupã. Por ter sido bem acolhido e cuidado, ele concede ao velho guarani e sua filha a realização do pedido que lhe fizessem, qualquer que fosse. O velho guarani pede ao emissário, então, que revigore suas forças para que sua filha possa ser liberada da tarefa de cuidá-lo. O emissário atende o pedido oferecendo-lhe a infusão de uma erva nativa revigorante, a Caá. Ao mesmo tempo, em reconhecimento ao valoroso cuidado que a filha tivera com o pai, o mensageiro de Tupã a torna protetora da Caá e dos guaranis, conferindo-lhe o nome de Caá Yari

Nascia, com essa lenda, não apenas um hábito alimentar ou uma bebida típica de alguma região do mundo, mas um verdadeiro símbolo cultural, tradutor de toda mística crioula do sul do mundo.

Quando os espanhóis chegaram nessa região do continente, mais precisamente no Paraguai, foram apresentados a esta bebida de infusão pelos guaranis. Escutando a lenda da erva-mate e sabendo que ela fora ofertada por Tupã, os jesuítas passam a denominar a Caá como “erva do demônio”. Corria, então, o Século XVI, quando seu consumo passa a ser proibido pela coroa espanhola, desencadeando um conflito entre jesuítas e guaranis. A Caá, porém, acaba seduzindo os religiosos que também começam a consumi-la e a  cultivá-la junto com os guaranis. A partir daí, o consumo da erva-mate se torna um hábito recorrente nesta região do continente americano, chegando a  integrar espanhóis e portugueses que, pelo menos para tomar mate, baixavam suas armas. Estes europeus, ao provarem o chá selvagem da Caá, expressam seu amargor com a palavra cimarrón, que significa algo bruto, chucro, bárbaro. 

Em 1820 August de Saint-Hilaire classificou cientificamente a planta de onde sai a erva-mate, dando-lhe o nome de Illex Paraguaiensis. Sobre o hábito de tomar o mate, Saint-Hilaire vai dizer: “ O uso dessa bebida é geral aqui. Toma-se ao levantar da cama e, depois, várias vezes ao dia. A chaleira de água quente está sempre ao fogo e logo que um estranho entra na casa, se lhe oferece o mate.”

No início do século XX o consumo de erva-mate passa por um período de baixa popularidade. A retomada acontece na época em que surge e se organiza o Movimento Tradicionalista. A partir dos anos 80 a erva-mate  ganha enorme visibilidade no meio urbano. O advento dos festivais nativistas atualiza todo significado cultural da roda de chimarrão e, naquele momento, se fortalece o hábito de andar por aí com uma cuia e uma garrafa térmica. Passam a ser comuns os encontros de amigos em parques como a Redenção para tomar chimarrão no domingo de tarde. 

Mas, o que, afinal, existe de tão especial neste hábito e nesta bebida para atravessar os séculos sendo ingerida, geração a geração, da mesma forma, por mais que os apetrechos do mate se aperfeiçoem? 

Talvez a perenidade do mate precise ser compreendida para além de um simples hábito alimentar: o mate é uma linguagem simbólica. 

Sendo um alimento comunitário, está associado às nossas relações. Ele nos remete a estar com alguém, com pelo menos uma pessoa com quem tenhamos ou estejamos estabelecendo uma relação de confiança. Se pensarmos nas pessoas com quem costumamos matear, talvez percebamos que o sabor do mate, o tipo de erva utilizada para seu preparo e outras tantas características que um mate pode ter, remetem às relações, ambientes, estados de espírito e à própria presença de alguém em nossa vida. E mais: mesmo aquelas pessoas que já se foram e que um dia matearam conosco, parecem se fazer novamente presentes quando sorvemos a seiva verde do chimarrão. 

Tomar um mate junto com outra pessoa é um ritual. 

Muitas são as tradições religiosas que tem seus rituais ligados a hábitos alimentares ou que consideram alguns alimentos, ingeridos sob determinadas condições, em determinados contextos, como alimentos sagrados. Será que nosso mate não seria também sagrado? Por sagrado não entendamos algo de outro mundo que se revela a nós em algum momento. Pelo contrário: sagrado é aquilo que, estando sempre conosco, revela os significados mais profundos do nosso cotidiano através de alguma experiência transformadora. Na lenda da erva-mate, por exemplo, a filha do guerreiro guarani se torna a protetora da erva-mate por causa de coisas cotidianas, como o cuidado que teve com o pai e a acolhida que deu a um visitante. Se é assim, o mate pode ser um símbolo que revela em nosso cotidiano a força do cuidado e da acolhida como questões sagradas da existência. A experiência de matear revela mais sobre a vida e sobre nós mesmos. 

O mate remete ao encontro, mas também à interioridade. 

Talvez, ao tomarmos mate sozinhos, nossa interioridade venha mais à tona, acompanhando a água que sobe pela bomba. Diante disso, quem sabe o mate não possa ser também entendido como um símbolo do próprio ser humano? 

A erva pode ser nossa história, com tudo aquilo que ela contém. 

A água pode ser nosso espírito, que encharca a nossa história e lhe dá um sentido. 

Ao mesmo tempo, sorvendo a infusão que está dentro da cuia, transcendemos este conteúdo. 

A erva que ali está é a própria mata nativa de onde ela saiu. Tudo que existe na mata está ali também. 

A água aquecida que a transporta pela bomba passou por muitos rios e vertentes e agora se funde conosco. 

E cada um de nós é toda a humanidade, colocada em um único ser. 

Não é  à toa que algumas cosmogonias indígenas tem a cuia como uma representação do universo, lugar onde tudo nasce, tudo se mistura, tudo se comunica. 

Matear é encontrar a si mesmo e ao outro, mesmo quando se mateia solito. 

Matear é participar da lenda da Caá Yari hoje, nos tempos em que vivemos. 

Matear é voltar às reduções jesuítas, do início do continente. 

Matear é transcender a própria condição terrena e participar da eternidade, na lembrança e na esperança da roda definitiva de mate, quando chegarmos ao rancho final. 

Até lá, seguimos aquecendo a água e renovando a erva, pois a vida pede esperança.

Ouça na íntegra o programa Reflexão:

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