Reflexão – O Gaúcho
“Eu venho de longe, eu venho de perto, eu venho de todos os cantos da Terra”…
Os versos de Canto de Aurora, clássica composição de José Machado Leal, Joviviano Pires e Valmir Pinheiro, que foi interpretada pelo grupo Os Muuripás, na II Califórnia da Canção Nativa, em 1972, talvez descrevam, de forma preciosa, a identidade deste tipo humano que surge na região fronteiriça do pampa: o gaúcho. Habitante destes confins do mundo, o gaúcho vem de longe e vem de perto. Vem de longe, da Espanha, de Portugal, do continente africano. Vem de perto, dos nossos povos originários, principalmente dos Guaranis. O gaúcho é um mestiço que surge do encontro entre os colonizadores europeus e os primeiros habitantes destas terras. Encontro que não pode ser idealizado ou romantizado: via de regra não há igualdade entre colonizadores e colonizados, muito pelo contrário. Todos sabemos qual foi efeito da chegada do europeu sobre os povos originários do continente americano e o que ocorreu aqui não foi diferente. De qualquer maneira, nesse encontro que surgiu este tipo humano que não era reconhecido pelos europeus e também não era aceito pelos guaranis. Um desgarrado campeiro, originalmente habitando às margens do Rio da Prata, tomado por nômade, bandido, desertor ou ladrão.
Mas quem é mesmo o gaúcho?
Quando Noel Guarany canta “Peço perdão aos senhores a minha xucra linguagem/ Pois nela eu trago a imagem do pampa de muitos anos/ De índio sul americano bordoneado de heroísmo/ E o eu crioulo aticismo num gesto de reverência/ Força minha inteligência e ser poeta sem catecismo” , em Filosofia de Gaudério, talvez esteja nos indicando uma trilha para saber quem seja o gaúcho. A palavra filosofia significa apreço, amor pela verdade. Um amor que existe mesmo na certeza de que a verdade é grande demais para ser compreendida pelo ser humano. Nosso olhar sobre a realidade é parcial. A verdade está na realidade e, assim, só conseguimos compreendê-la parcialmente. Lembro isso para afirmar que nunca vamos saber toda a verdade sobre o gaúcho, mas, a partir de pesquisas e registros históricos, talvez seja possível nos aproximarmos um pouco da realidade deste tipo humano. Uma das primeiras questões que precisamos compreender, talvez seja o significado da palavra que utilizamos para nos referir a esse mestiço pampeano. A música de Noel Guarany utiliza a palavra gaudério no título da sua música. No Dicionário da Cultura Pampeana, de Aldyr Schlee, gaudério é descrito como “indivíduo extraviado, sem rumo, sem destino”. No mesmo verbete lê-se que “até o século XVIII era o mesmo que gaúcho – homem, vago, errante, ocioso”. Já a palavra gaúcho, segundo o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas, organizado pela Prof.ª Dr.ª Zilá Bernd, é um termo que vai surgindo como variação de algumas outras palavras. Gaúcho viria de garrucho, que significa desgarrado, em português arcaico; de huacho, que significa órfão ou abandonado em araucano; de chaucho, que significa aventureiro rústico, em andaluz; ou ainda de gachó, que significa estrangeiro, na língua cigana.
Mas quem é, afinal, o gaúcho?
Uma das formas de conhecer uma pessoa é por aquilo que ela faz ou por aquilo que lhe toca fazer quando não lhe restam outras opções. Um dos ofícios que caracterizam historicamente o gaúcho é a faena: caça e abate de gado alçado para comercialização, ou melhor, contrabando de couro. Isso remete ao final do século XVIII, momento em que se reconhece a existência de uma população rural rio-platense que não contava com recursos econômicos e sem propriedades. Este gaucho platino é reconhecido como tal não por suas habilidades ou características étnico-raciais, mas, antes de mais nada, por fazer parte de uma classe social. Segundo Sandra Contreras, o Gaucho Platino, desde meados do século XVIII, é todo aquele que foi excluído dos centros de poder. Os que não puderam se tornar proprietários, comerciantes, sacerdotes, militares, conchavados permanentes ou artesãos. Assim, o gaucho estava sujeito à lei de vadios e mal-entretidos, enquadrados na delinquência campesina e também acabava sendo enquadrado na lei de levas, que alistava compulsoriamente os desocupados nas fileiras do Exército de Fronteira.
O gaúcho é um renegado.
Renegado é aquele que não é reconhecido em seu meio e talvez essa seja uma das grandes características do gaúcho. O que esse gaúcho faz com esse sentimento de rejeição ou até de indiferença quanto a ele naquele tempo? Ele transforma isso em uma espécie de autonomia marginal. Autonomia porque ele precisa se virar por conta própria. Marginal por acontecer à margem da sociedade constituída na época. O gaúcho é um marginal em sua época. E não faltam registros históricos para afirmar isso. Liborio Justo, político e intelectual argentino, assim fala sobre esse tipo humano na obra Pampas y Lanzas, de 1962: Assim foi que a banda oriental se encheu de vagabundos, que se denominaram primeiro changadores (1729), logo gaudérios (1763) e mais tarde gaúchos (1790).
Sendo assim, por que o gaúcho é lembrado até nossos dias?
De que forma o gaúcho, de marginal, torna-se herói?
No contexto argentino, o final do Século XIX e início do Século XX testemunha um contexto de articulação intelectual para a elaboração de uma “identidade nacional”. Isso acontece principalmente em decorrência dos grandes fluxos migratórios que vinham para o continente americano na época, sendo que naquele contexto corria a ideia de que a presença do estrangeiro acabaria desagregando a sociedade. Buscou-se, então, uma “essência” da identidade argentina, que foi encontrada exatamente no gaucho, por ele ser livre e rebelde contra todo poder injusto. Trata-se de uma grande contradição: o gaucho era um sem-lei exatamente por não ser reconhecido em sua própria terra de origem. Era um estrangeiro em qualquer lugar e naquele momento é utilizado para sustentar um nacionalismo que se aproximava da xenofobia. Talvez por isso, infelizmente, boa parte do nosso imaginário construído a respeito do gaúcho o aborde muito mais a partir de uma identidade idealizada mitologicamente do que a partir das realidades históricas de onde realmente emergiu esse tipo humano.
Aqui no Rio Grande do Sul o gaúcho também é idealizado na literatura, poesia e música. Mas uma série de transformações históricas vão deslocar esse gaúcho de seu lugar idealizado e transformá-lo em um exilado em sua própria terra. A chegada de inovações tecnológicas no campo, como a refrigeração elétrica, levarão as charqueadas a entrarem em um ciclo de decadência, ocasionando a migração dos trabalhadores rurais para as cidades. Trabalhadores rurais, estes, que já são uma espécie de pós-gaúcho: uma vez que o gaúcho se caracterizava por não ter propriedade ou paragem, a condição assumida de peão de estância, leva essa população a perder a condição que a caracterizava. O século XX, assim, encontra um gaúcho exilado pelas cercas do campo e pelos prédios da cidade. Um gaúcho pobre e doente.
Frente a tudo isso talvez seja necessário perguntar: ainda existem gaúchos?
O que seria um gaúcho nos tempos em que vivemos?
“O que chamamos de começo costuma ser o fim. E fazer um fim é fazer um começo. O fim é o lugar de onde começamos”, diz o escritor norte-americano T.S. Eliot. No fim, há um novo início. Se considerarmos que o gaúcho, historicamente se constituía pela condição de não ter posses ou paragem, de não pertencer a nenhum lugar e ser um estrangeiro na própria terra, precisamos voltar nosso olhar para as populações do campo e da cidade que vivem condições semelhantes a essas para vislumbrar a condição gaúcha de vida em nosso tempo. Para tanto, também se faz necessário desconstruir em boa parte nossas idealizações a respeito deste tipo humano. Assim, quem sabe, no fim de uma imagem do gaúcho não encontremos o início de uma nova concepção dessa identidade?