Reflexão – O Cavalo
Se existe um assunto inesgotável na cultura gaúcha, este assunto é o cavalo.
Sim… o cavalo, em nossa cultura não é apenas um animal, ele é um assunto, um verdadeiro eixo cultural.
Sempre há muita coisa para se discutir a respeito do cavalo e a Rádio Sul tem cultivado espaços riquíssimos para tratar do assunto, como o Programa Cavalo Crioulo em Debate, liderado por Leôncio Severo. Da mesma forma, temos o Projeto Influência, do Henrique Fagundes da Costa e do Eduardo Rocha, que apresenta uma pesquisa fantástica sobre a história da formação cultural do gaúcho sob o olhar da equitação crioula. Diante de tantas contribuições valiosas, não vamos neste texto abordar questões como pelagem ou arreios: tem gente muito mais qualificada para abordar isso do que eu. Nossa reflexão, então, vai por outro caminho, que é a discussão do significado do cavalo em nossa cultura.
Seria o cavalo o símbolo de algo que nos define?
Creio que sim.
Mais do que isso, creio que o cavalo seja, no universo cultural gaúcho, um verdadeiro mito.
Percebam como João Simões de Lopes Neto descreve um certo cavalo no conto O meu rosilho Piolho:
“De cômodo, era uma rede! De patas, um raio! De rédea, como uma balança! E manso como um cordeiro, de boa boca como um frade, faceiro como uma rosa e armado, de barba ao peito, como um conde de baralho!”
Para descrever o cavalo ele faz uma série de comparações, como é bem comum em nosso linguajar gauchesco. Só que esse linguajar comparativo também é típico de narrativas mitológicas. Os próprios israelitas, quando se referem a Deus, o fazem por meio de comparações, pois não tem como descrever o mistério. Nesse sentido, o cavalo é um mito muito próximo. Ele ocupa, na vida do gaúcho, um espaço de convivência e comunhão como poucos seres ocupam.
Não apenas a história do gaúcho é contada com a presença do cavalo, mas também o inverso: a história do cavalo se torna uma narrativa no imaginário gaúcho.
Por exemplo, na música Partejando, de Heleno Cardeal e Zulmar Benites, a história do nascimento de um cavalo é narrada atribuindo diversos significados para cada momento deste processo, tão natural para o animal. Lá se descreve desde a preocupação com a posição do filhote que está nascendo e o risco que corre a égua que está parindo, até as perspectivas sobre o animal recém-nascido, a partir de suas características. Apesar do nascimento de um cavalo ser algo integrado às lidas de campo, o que se escuta nessa música o configura como um acontecimento que ultrapassa o funcional. A partir do nascimento daquele potrinho, se abre uma nova história que será escrita pelo companheirismo entre o animal e aquele que o montar.
Mais do que companheirismo, aliás: integração.
Na música Assim se forja um centauro, de Flávio Hansen, a doma é apresentada não apenas como uma técnica para amansar o animal, mas como um ritual no qual ginete e potro se tornam um só ser. É deste ritual que emerge um mito, distintivo da própria identidade gaúcha: o Centauro das Coxilhas.
O centauro é um mito grego.
Segundo a lenda, o rei Íxion, da Tessália, apaixonou-se pela deusa Hera, esposa de Zeus. Para enganar Íxion, Zeus moldou uma nuvem com a imagem de Hera e Íxion teve relações com esta nuvem. Dessa união nasceram os centauros, que se comportavam como selvagens e se alimentavam de carne crua.
Provavelmente o mito tenha surgido da observação dos vaqueiros da Tessália que eram hábeis cavaleiros e pareciam estar integrados aos animais que montavam. Mitologias são narrativas simbólicas, repletas de significados atemporais.
Os centauros, como mitos, parecem guardar em si a eterna crise entre racionalidade e animalidade que todo o ser humano vive.
Que tipo de centauro, então é o gaúcho montado em seu cavalo?
Na música Um homem sai a cavalo de Tadeu Martins e Lenin Nuñes, a impressão que se tem é que homem e cavalo são uma síntese do próprio pampa. Se colocarmos isso frente à sabedoria incaica, que ensina ser o homem terra que caminha, talvez possamos conceber o gaúcho como o pampa a cavalo, pois no homem e no animal se reconhece o ambiente em que habitam.
Gaúcho e cavalo parecem ser um só e por vezes, o gaúcho simbolicamente toma o lugar do cavalo. Ele passa a medir a maneira como ele se sente a partir de comparações com as características e reações do cavalo, ou a comparar sua vida e seu cotidiano à lida com o cavalo. Parece haver uma troca: o cavalo é humanizado, tem sentimentos e impressões da vida como as pessoas e o gaúcho, principalmente diante dos problemas e decepções da vida, se coloca como um cavalo cabresteado ou mal-domado.
Ouço o cincerro da velha égua-madrinha,/ Quero-quero gritando lá no baixo./ Fico alegre quando alguém me quebra o cacho/ E vou ver a china linda que foi minha./ De madrugada, ao romper da aurora,/ Cheio de pranto que meu peito afoga,/ Tenho vontade de rebentar a soga/ E ir relinchando pela estrada afora.
João da Cunha Vargas não fala em cavalo na poesia Pingo à soga, mas constrói uma narrativa em primeira pessoa onde o narrador tem o ponto de vista do cavalo. Parece que só entrando na pele deste animal ele consegue dar conta de compreender seus sentimentos e formular uma visão de mundo. Se considerarmos que o gaúcho é por vezes um solitário e quase sempre se encontra em um estado de melancolia, talvez comecemos a compreender os motivos dele ter neste animal seu principal interlocutor. Afinal, é o cavalo que o carrega pelas estradas e corredores sem fim do pampa. É o cavalo que, junto com ele, olha o horizonte ao amanhecer e ao anoitecer e durante toda jornada.
O cavalo, porém, é tão mortal quanto aquele que o monta.
Em Funeral de Coxilha, Sérgio Carvalho Pereira descreve a ressurreição de um cavalo a partir de uma profunda visão ecológica. O cavalo que morre volta a se tornar um só com a terra, com o pampa. Ele não é enterrado, pois o campo já tem uma nova missão para ele. Seus restos alimentarão plantas e animais, reintegrando-o ao ciclo vital de seu chão. E a cada manhã ele ressuscitará nesta mesma terra, em vida multiplicada nas muitas vidas daquele ambiente.
Este mesmo cavalo, que viveu sua vida em comunhão com o homem.