Fronteira com o Uruguai tem influência do ‘portunhol’ na cultura e nos negócios
Quando se coloca o pé na calçada, perambulando pelas ruas limítrofes de uma fronteira como a de Santana do Livramento com Rivera, é difícil saber onde termina o Brasil e onde começa o Uruguai. Entre as linhas irregulares desenhadas no mapa, há comércio ambulante, free shops e muita gente intercambiando pesos, reais e dólares.
O mesmo ocorre ao se acompanhar a fala dos habitantes locais. Ora acionam o português, ora o espanhol, e acabam se comunicando por meio de uma mistura de ambos, que se convencionou chamar de portunhol. A origem dessa forma de falar remonta ao período colonial, quando portugueses e espanhóis disputavam domínios na Região das Missões e do Rio da Prata.
Após amplo predomínio do guarani, o portunhol pode ter sido língua franca até o século XIX, conforme apontam alguns historiadores. No século seguinte, com a ascensão dos nacionalismos, a fala mesclada ganhou um sentido pejorativo e foi desestimulada nas escolas e nos âmbitos governamentais. Mesmo assim, no dia a dia e no campo artístico, o portunhol permaneceu como via comunicativa afetiva e em constante transformação. Hoje, essa forma cultural de se expressar vem sendo reconhecida como patrimônio da fronteira, mesmo que haja controvérsias em torno dela.
A experiência pessoal do poeta, tradutor e dramaturgo Michel Croz ajuda-nos a adentrar o universo fronteiriço. Nascido em Rivera, já viveu em Montevidéu e Porto Alegre. De volta à terra natal, relata lembranças da convivência com sua avó na cozinha de casa. “As nossas avós são as depositárias do que tem de mais sagrado da língua e de todo o conhecimento”, afirma. Divertindo-se, Croz conta que sua avó sempre recomendava aos netos que não falassem portunhol e aprendessem o espanhol e o português “direitinho”. Para ela, o dialeto era “coisa de gente desocupada”, “coisa de bagaceira”. No entanto, só se expressava em portunhol.
Michel Croz observa que existem muitos portunhóis. O falado em um bairro não é o mesmo de outro. O portunhol de Artigas difere do encontrado em Bagé ou em Jaguarão. “A sua beleza intocada se dá pelo fato de que ainda não pode ser direcionado – as palavras não têm dicionário, ou uma gramática. Ainda bem!”, comemora Croz. Para ele, o portunhol é uma língua dos afetos, que se fala para comunicar no presente, resgatando o passado. “Há uma tradição forte, mas que se impulsa para o futuro”, conclui.
Perspectiva similar está nos estudos do historiador Eduardo Palermo, que procura compreender o portunhol como fenômeno cultural. “É muito difícil tu falar espanhol 24 horas por dia, 365 dias por ano, quando tu convive mais tempo com pessoas que falam português”, observa. Mesmo que as crianças estudem em espanhol na escola, os costumes familiares não se modificam a ponto de deixarem de falar portunhol.
Assim, o historiador acredita que o fronteiriço se identifica mais com o vizinho do país ao lado do que com as capitais distantes quilômetros dali. Os vetores de diferenciação e de integração ocorrem simultaneamente. A população conhece as leis dos dois lados e faz uma adequação ao dia a dia, um manejo. “Nossa estrutura mental está concebida em uma sorte de contrabando permanente”, acredita. Segundo o historiador riverense, o portunhol é um patrimônio imaterial em plena evolução. “O que vai ser daqui 10 anos, não se sabe; o que se pode afirmar é que há pelo menos 300 anos ele existe”, atesta Palermo.
Essas abordagens da linguagem, afetiva e cultural, ampliaram-se na semana entre 19 e 22 de junho, por meio da poesia e da música, nos encontros promovidos em um festival sediado simultaneamente em Santana do Livramento e Rivera. Artistas de diversos países latino-americanos participaram da primeira edição do Livrera – Festival Internacional de Poesia. Foram quatro dias de convivência e saraus coletivos, promovidos em escolas e centros culturais. Declamaram-se versos em português, espanhol e portunhol. Selaram-se amizades e se aprofundaram desejos de reconhecimento e valorização mútua.
De língua maldita a símbolo de integração
Em escolas de Rivera, muitas das crianças chegam às salas de aula falando apenas o portunhol JOÃO VICENTE RIBAS/DIVULGAÇÃO/JC
Afastando-se pouco mais de três quilômetros a oeste da conurbação fronteiriça com Santana do Livramento, deixando para trás as ruas de intenso comércio, chega-se a Paso de la Estiva, área de habitação popular no município uruguaio de Rivera. A denominação do bairro combina o idioma espanhol “paso de la” com o português “estiva”, em referência aos trabalhadores do porto seco. Em Paso de la Estiva está a Escuela 111, de ensino público primário, que recebeu, em junho, um sarau poético promovido pelo festival Livrera.
No bairro, a maior parte da população fala portunhol. Muitas das crianças chegam ao ambiente escolar sabendo apenas o dialeto. Então passam a aprender o espanhol e o português formais. A língua portuguesa faz parte do currículo desde 2010, seguindo as políticas linguísticas do governo uruguaio. Vanessa Lima é a professora responsável pela disciplina e relata que muitos alunos usam expressões próprias do dialeto. Por exemplo, cadeira, que é “silla” em espanhol, eles falam “sía” em portunhol. Contudo, a educadora não repreende a linguagem dos alunos. Não está errado dizer “sía”. Vanessa explica que cada um tem seu jeito de se expressar. “Em casa está tudo bem que se comuniquem assim, mas na aula tratamos de falar o português”, assegura.
A mistura de idiomas foi aprovada pela escritora e professora universitária Eliana Lucián, de Montevidéu, que esteve na fronteira orte para o festival. Observando a interação de artistas e público, Eliana sugere que poderia haver mais políticas visando à aprendizagem da literatura brasileira. A escritora adorou conhecer a obra de Saúl Ibargoyen, o homenageado da primeira edição da Livrera. Diz que, em Montevidéu, conhecem mais o escritor Fabián Severo, de Artigas, que escreve em portunhol e é reconhecido dentro do cânone literário nacional.
Michel Croz lembra que houve um tempo em que o portunhol não cabia nos programas de ensino, mas que hoje há uma abertura maior. “Há sociolinguistas que trabalham sobre o portunhol de forma a abrir a possibilidade de entendê-lo não como língua maldita, de gente que não tem cultura”, reitera. Croz concorda com essa perspectiva: “O portunhol tem que ser plural, tem que ser mestiço, porque nessa mistura está sua grandeza, sua forma de se vincular, sua forma de putear, sua forma de dizer coisas terríveis e coisas amorosas”. Essa carga emotiva do dialeto é o material que sustenta seu texto dramatúrgico Us fío. Encenada há dois anos, a peça remonta a infância em Rivera, na década de 1970. Relembra amores, tragédias, política, machismo e relações fronteiriças. “Um drama en portuñol”, resume o autor Michel Croz.
Próximos desse enredo, os alunos da Escuela 111 receberam ainda, além do conterrâneo, os brasileiros Dilan Camargo e Richard Serraria. Nascido em Itaqui, na fronteira com a Argentina, Camargo viveu a infância em Uruguaiana. Ouvia sempre as rádios do outro lado, mas nunca estudou espanhol. Pela experiência, fala mesclando ao português vocábulos familiares da língua vizinha. Desta forma, apresentou poemas do livro Rimas pra cima (Artes & Ofícios, 2014), interagiu e se divertiu com a plateia.
No mesmo clima “pra cima”, o porto-alegrense Richard Serraria começou utilizando uma expressão que aprendeu com o amigo fronteiriço Mimmo Ferreira, o “vamo arriba”. Tal chamamento não contém apenas uma semântica própria, mas revela um jeito de falar. A entoação é matéria-prima do cancionista Serraria, por isso encontra na fronteira um manancial de expressões e sotaques que gosta de incorporar em sua música. “A linguagem revela o contexto social e aqui isso se mostra de uma forma muito autêntica”, observa. Na última década, o artista começou a frequentar os países vizinhos, pesquisando a cultura negra. No contato com artistas como Pablo Grinjot, Tomi Lebrero, Daniel Drexler, Dany López, Sebastián Jantos, foi percebendo a cultura como elemento vivo, que não obedece fronteiras geopolíticas. “A canção é uma arte vagabunda, digamos assim, no sentido mais elogioso possível; muitas vezes, ela não é considerada literatura, outras vezes, ela não é considerada música erudita, mas, ao mesmo tempo, é um espaço de expressão que permite muita coisa”, analisa.
Serraria cantou, fez rap e obteve uma receptividade calorosa do público na Escuela 111, para suas canções repletas de gírias porto-alegrenses. O cancionista observa que muitas vezes as pessoas não entendem as palavras, mas o ritmo, a melodia, a entonação, podem ser convincentes. “Mesmo não entendendo a língua, é possível gostar da canção”, observa.
Homenagem ao escritor adepto do portunhol
A região fronteiriça desvela-se na novela Toda la tierra (Editora Eón, 2000), a partir de histórias de vida marcadas pela dualidade de um espaço rural sem linhas divisórias. Nela, há uma variedade linguística oral, para a qual o escritor escolhe uma ortografia própria. O autor dessa narrativa e de mais de 45 obras literárias, que incluem poesia, é o uruguaio Saúl Ibargoyen. O escritor faleceu em janeiro deste ano no México, onde havia se exilado em 1976, e foi o homenageado da primeira edição do festival Livrera. Sua viúva, a dramaturga Mariluz Suárez Herrera, afirmou que “Saúl foi profundamente fronteiriço, amava este lugar”. Segundo Mariluz, entre o escritor e seus leitores não havia barreiras: “O leitor mexicano também gosta, lê em portunhol, com glossário para as palavras estranhas ao espanhol”. Ibargoyen deixou um livro inédito, que será lançado ainda neste ano.
A trajetória do escritor foi uma das inspirações para o festival, bem como a movimentação em torno da literatura que marca a região. Um dos organizadores, Wilson Javier Cardozo, costuma frequentar grupos de leitores e escritores. “De uns tempos para cá, começamos a editar obras coletivas e a revista Abrelabios, homenagem à publicação que teve edição única durante a ditadura militar”, relata.
Para Cardozo, a parceria com Artur Montanari, de Livramento, foi essencial para realizar o evento. O brasileiro também promove ações culturais e feiras do livro há 18 anos e comemora a parceria que deu certo. Sobre homenagear um escritor que se destaca no uso do portunhol, Montanari comenta que na obra de Saúl Ibargoyen se tem uma ótima expressão do quanto esse dialeto se presta à arte, de forma livre. “Sistematizar como língua é matar o portunhol”, opina.
A fala como patrimônio social
Região comercial entre Santana do Livramento e Rivera integra diversas formas de falar JOÃO MATTOS/ARQUIVO/JC
Diretor do Museu do Patrimônio Regional de Rivera, o historiador Eduardo Palermo participou de uma campanha em 2015, que pretendia tornar o portunhol patrimônio imaterial do Uruguai. Naquele ano, foi realizado um ciclo de conferências, que acabou gerando a publicação do livro Jodido Bushinshe, disponível na internet. Mas não houve consenso das autoridades e a campanha não avançou.
O historiador sustenta a tese de que, na história da região, nos últimos 300 anos, o portunhol foi a língua franca. Anteriormente, teria sido o guarani. Com os domínios ibéricos avançando, o português e o espanhol foram se misturando às línguas de origem africana, como o bantu, e o próprio guarani. “A linguagem na fronteira é uma grande mistura, sem ter uma norma, ou uma estrutura, e que vai mudando, é extremamente dinâmica”, observa. Hoje, há também a influência do espanhol de outros países, que vêm nas dublagens de programas de TV a cabo, e se mesclam com o falar tradicional da região. “Meus filhos pequenos usam muitas palavras que não são próprias do rio da Prata, mas de um espanhol standard de Miami”, conclui.
Alguns pesquisadores preferem o termo fronteiriço para englobar toda uma cultura em torno do falar de fronteira. Palermo considera interessante e explica que começaram a usar o nome portunhol nos anos 1950. Já nos anos 1960, veio o conceito de DPU (Dialetos Portugueses no Uruguai), classificando regionalismos como o bayano e o carimbáo. No entanto, o historiador acredita que o portunhol está à margem das esferas oficiais. “Se tu perguntar a um uruguaio aqui em Rivera qual o idioma que ele fala, ele irá dizer espanhol, ou talvez o português; não dirá que fala portunhol”, garante. Mas repara que, no cotidiano, é o portunhol que se fala mais. “As pessoas falam da melhor forma possível para se comunicar, sem que se pense nisso”, atesta.
Longe dos centros urbanos, há outro falar misturado, que pode ser chamado de gauchesco e inclui muitas expressões ligadas ao campo. A família da pesquisadora e tradutora brasileira Ana Maria Netto Machado vive no interior do Uruguai, a 160 quilômetros de Tacuarembó. “Lá a linguagem é do interior, o gauchesco, falam bem entreverado”, relata. Machado se criou em Montevidéu e observa que o montevideano entende menos o português que o pessoal do interior. Aprendeu o espanhol no colégio, na década de 1970, e não misturava as duas línguas. Durante muito tempo, a pesquisadora admite que nutria certo preconceito com o portunhol. Acreditava que era desleixo de quem não conseguia aprender a falar a língua dos países vizinhos. Mas há alguns anos, a partir de uma experiência em um evento internacional, mudou de ideia e passou a reconhecer o valor do portunhol para a comunicação entre os latino-americanos, numa perspectiva descolonial, que se desprende das línguas europeias.
Karla Müller, Diretora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, pesquisa fronteiras desde fim dos anos 1990. Seus estudos abrangem os limites entre o Rio Grande do Sul, o Uruguai e a Argentina, além do Mato Grosso do Sul com a Bolívia e o Paraguai. Comparando os diferentes contextos, a pesquisadora acredita que nas fronteiras uruguaias há mais mistura de palavras. E explica que, com a Argentina e o Paraguai, historicamente, a relação é mais tensa. “Tudo isso se reflete na forma de falar e na integração”, observa. Assim, há uma relação identitária bem próxima, guardadas as diferenças. “A língua faz parte da cultura fronteiriça, e nela é importante demarcar quem tu és, dizer se é brasileiro, uruguaio, doble chapa”, afirma.
Karla prefere utilizar o conceito fronteiriço para designar a mescla de expressões que caracteriza esse linguajar. O falar do fronteiriço toma palavras emprestadas, mas mantém a estrutura da língua materna. Já no portunhol, a pesquisadora observa muito mais um atropelo na correção dos idiomas, que é muito corriqueiro nas transações comerciais. “Se tu respeita a língua do outro, tu não vai atropelar, vai tentar falar de uma forma clara, mesmo que seja na tua língua, mas que ele te compreenda”, opina.
Pelas ruas da fronteira, muitos sotaques e uma só cultura
Elida de Souza e sua sobrinha Maira de Souza são bilíngues JOÃO VICENTE RIBAS/DIVULGAÇÃO/JC
O santanense Maureci Cavalcanti tem uma banca de revistas na praça José Bonifácio há 40 anos. No seu caixa, há sempre duas moedas, o peso e o real. Entre os jornais que vende está A Plateia, que publica três páginas em espanhol e circula nos dois países. A partir de sua experiência, afirma que os uruguaios têm mais hábito de leitura que os brasileiros. Também fazem sucesso entre os riverenses os álbuns de futebol. Os colecionadores costumam se reunir na praça, junto à banca, para trocar figurinhas. Cavalcanti diz que nunca teve aulas de espanhol, e que atende a clientela misturando palavras que aprende no dia a dia. “O importante é entender e se fazer entender”, acredita.
Do outro lado da fronteira, o leiloeiro Elio Piedra Silveira reclama que os brasileiros não entendem o espanhol, enquanto os uruguaios se esforçam para entender o português. Silveira lembra que para conseguir um emprego no comércio de Rivera, é preciso ser bilíngue. Já em Livramento não há essa exigência. O uruguaio se orgulha de entender o português, mas lamenta que os brasileiros só falem o seu idioma. “Não falo portunhol por bronca; ou me entende ou azar o teu”, contesta.
No caso da família Souza, que reside em Livramento, há facilidade com ambos idiomas. Filhas de casais uruguaio-brasileiros, Elida de Souza e sua sobrinha Maira de Souza são bilíngues. A tia nasceu em Rivera, mas admite que no cotidiano usa mais o português. A não ser quando vai a órgãos públicos do Uruguai. Já Maira, que nasceu no Brasil e tem dupla cidadania, conta que em Montevidéu as pessoas estranham sua forma diferente de falar.
Nas ruas que integram o comércio da fronteira, a vendedora uruguaia Carolina Pereira Paz declara seu amor pela região e pelas relações proporcionadas ali, embora tenha suas críticas. O brasileiro seria meio desconfiado: tenta aprender palavras no espanhol, mas não entende o que ela fala.
Paz reafirma o clima de irmandade, porém observa a rivalidade no futebol. “Quando o Uruguai está perdendo, os brasileiros jogam bomba”, relata. A comerciante costuma assistir aos canais de televisão brasileiros e ouvir as rádios de Livramento. Aprendeu a falar um pouco de português na escola e na rua, vendendo lanches na Fronteira da Paz.
[ Glossário ]bagayero – vendedor ambulante de mercadoria contrabandeada
bushinshe – rebuliço, bochincho, quiproquó
doble chapa – filho de mãe uruguaia e pai brasileiro, e vice-versa
putear – repreender, xingar
rompidioma – que mistura línguas
sía – cadeira
us fío – os filhos
vamo arriba – vamos lá
João Vicente Ribas é jornalista, doutor em Comunicação pela
Pucrs e autor do blog Pampurbana. Foi repórter da TVE-RS.
Fonte: Jornal do Comércio
Foto: JOÃO VICENTE RIBAS/DIVULGAÇÃO/JC