Barbosa Lessa: um ícone da cultura e do tradicionalismo
No próximo 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, muitos rincões da querência nativa haverão de festejar o aniversário do advogado, compositor e ensaísta Luiz Carlos Barbosa Lessa, lanterna de proa do movimento cultural iniciado formalmente em 1948, em Porto Alegre, com a fundação do 35 Centro de Tradições Gaúchas (CTG), clube de danças e cantos replicado às centenas no Brasil e até em outros países. No livro Nativismo – Um fenômeno social gaúcho (1985), Lessa estimou em 2 milhões os adeptos dos CTGs ao redor do mundo – um baita exagero se comparado aos 22 sócios-fundadores do CTG pioneiro, tão pobre que funcionou inicialmente em dependências da Farsul, a Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul. “Cônscia de sua responsabilidade como retransmissora da cultura cosmopolitana e consumista”, segundo as palavras de Lessa, a população de Porto Alegre não se interessou pelos jovens vestidos como se fossem peões. Alguns, na realidade, eram filhos de fazendeiros.Nascido em 1929 em Piratini, filho de um médico de província, Barbosa Lessa morreu de câncer em 2002, mas continua sendo lembrado como o ideólogo do tradicionalismo. Advogado, compositor e ensaísta, foi um dos estudantes secundaristas do Colégio Julio de Castilhos que, saudosos da vida no campo, aderiram – montando cavalos emprestados – à etapa final da cavalgada que trouxe os ossos do general farroupilha Davi Canabarro do Interior para a Capital. A partir daquele evento de 1947, setembro virou o mês das comemorações da Revolução dos Farrapos (1835-1845).
Desde os 17 anos revisor da respeitada Revista do Globo, onde trabalhava à noite, Lessa foi o último a entrar para a turma dos chamados tradicionalistas. Bem informado, com muitas leituras históricas que lhe deram uma rara segurança ideológica, desenvolveu a teoria que teve como organizador prático o poeta e professor Glaucus Saraiva (1921-1983) e, como maior propagandista, o agrônomo José Carlos d’Ávila Paixão Cortes (1927-2018), que encarnou a figura do gaúcho campeiro ao posar em meados dos anos 1950 para Antonio Caringi, o escultor da estátua d’O Laçador, símbolo de Porto Alegre.O menos saliente do trio articulador do cetegismo, Lessa permanece vivo em bailes, shows e tertúlias, onde sempre se ouve uma ou outra da meia centena de canções que compôs. Ele também é lembrado em artigos, salas de aula ou palestras em que seus livros são citados. Há um ano, foi finalmente lançado pela Editora da Ufrgs o livro O centauro e a pena: Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas, de Jocelito Zalla, jovem professor de história que analisa, critica e interpreta o maior fenômeno cultural dos últimos 70 anos no Sul do Brasil.Natural de Vera Cruz, Zalla não conheceu Lessa pessoalmente. “Quando ele faleceu, eu tinha 18 anos e ainda não havia ingressado na faculdade. Mas eu sabia da importância dele para o movimento tradicionalista gaúcho e também conhecia alguns de seus contos, lidos na minha escola”, disse ele ao Jornal do Comércio. Anos depois, quando decidiu investigar a invenção das tradições gaúchas na sua dissertação de mestrado, iniciada em 2008, Zalla viu em Lessa “a figura certa para acompanhar o processo”.De fato, no livro de 348 páginas, Zalla põe Lessa em um dos patamares mais elevados da história do Rio Grande do Sul. Mais do que uma biografia de um intelectual liberal-conservador, O centauro e a pena é um estudo profundo sobre o processo de configuração da identidade dos habitantes do Estado. Ao pesquisar a constituição do primeiro CTG, Zalla concluiu que Lessa e seus parceiros deram uma boa fantasiada ao adotar como próprias de todos os gaúchos as ideias liberais clássicas que animaram alguns líderes da Revolução dos Farrapos, especialmente Bento Gonçalves, que não foi republicano nem abolicionista. Além disso, argumenta o professor, Lessa e companhia também sofreram a influência do positivismo dos caudilhos Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. “Acho que, no caso da tradição gaúcha, o maior perigo que corremos é perpetuar o conservadorismo como valor de nossa sociedade”, disse Zalla em entrevista à Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, cidade onde lançou seu livro em 2018, antes de apresentá-lo à Feira do Livro de Porto Alegre.Isento de bravatas, mais à vontade de paletó e gravata do que de bombachas, Barbosa Lessa foi o vaqueano do tradicionalismo gaúcho. Disso resultou um paradoxo amargurante para ele: embora tenha sido apontado como um dos 20 gaúchos mais importantes do século XX, ao lado de figuras como Erico Verissimo e Getúlio Vargas – segundo enquete promovida em 2000 pelo Grupo RBS -, não teve reconhecidas, no Rio Grande, as qualidades que críticos do eixo Rio-São Paulo viram nele, como a de escritor. Por coincidência, há exatamente 60 anos, seu livro Os guaxos foi escolhido pela Academia Brasileira de Letras o romance do ano. Seu subtítulo: “o romance do gaúcho a cavalo”. Personagens: peões de estância.
Piratini, Pelotas e Porto Alegre
Filho de um médico-fazendeiro, Barbosa Lessa foi alfabetizado pela mãe, Alda Barbosa Lessa, mulher culta, que também lhe ensinou música no piano. E aprendeu história ao vivo: em 1935 viu construírem na praça central de Piratini o obelisco do centenário da Revolução Farroupilha – a cidade fora a primeira capital da República Rio-grandense.Na adolescência, cursando o ginásio em Pelotas, sofreu influência de revistas e filmes dos Estados Unidos, a quem o Brasil se aliara na luta antinazismo. Chegou a escrever contos inspirados em personagens ianques até ser questionado pelo irmão mais velho. “Por que não escreves sobre coisas nossas?”, perguntou-lhe Paulo Barbosa Lessa, futuro desembargador. “Mas pode?” Luiz Carlos achava que era proibido escrever sobre o Rio Grande – sem tomar consciência disso, tinha absorvido a censura do Estado Novo, instaurado em novembro de 1937, quando o governo federal mandou queimar as bandeiras dos estados.A partir do alerta do mano, cresceu o escavador das raízes do Rio Grande dos peões e das prendas, até então entrevisto em narrativas esparsas de Simões Lopes Neto, Darcy Azambuja e, também, no Martín Fierro de José Hernández. Foi quando se deu conta de que num dos porões da família havia um duplo tesouro: o Almanaque de Alfredo Ferreira Rodrigues e os Anuários da Província, de Graciano Azambuja, duas das maiores fontes da história regional.Ao chegar a Porto Alegre, em 1945, Lessa se ressentiu do bullying dos colegas do Colégio Julio de Castilhos. Lá, alguns caçoavam dos egressos do Interior e ninguém respondia à pergunta do piratiniense: onde ficava o monumento a Bento Gonçalves? Lessa descobriu sozinho. Diante da estátua, aos 15 anos, fez um juramento: “Bento Gonçalves, tu estás muito esquecido, mas eu prometo que tu ainda vais ser lembrado e vai ter muito estudante do Julinho que vai desfilar na tua frente” (depoimento à Coleção IEL).
O teórico e o pragmático
Barbosa Lessa era discreto e reservado, ao contrário de Paixão Cortes, expansivo e tagarela. Descontadas as figuras pessoais – Paixão, à vontade dentro das bombachas, lenço no pescoço; Lessa contido dentro do terno-colarinho-gravata de executivo -, a dupla engendrou uma revolução cultural que se espalhou rapidamente pelo rádio, gerou livros e discos, inspirou bailes e shows, conquistou a TV, chegou ao cinema e está difundida no Brasil e em vários países graças a centenas de centros de tradições gaúchas. Uma revolução conservadora: pode?Não foi pouca coisa. Graças a um trabalho de pesquisa temperado por boas doses de criatividade, Lessa e Paixão apresentaram aos habitantes da capital um certo modo de vestir, falar, cantar e dançar, fazendo a prosa galponeira passar à categoria de cultura associada à vida nas estâncias de gado, atividade predominante desde o início do povoamento do território gaúcho. A querência alemã do vale do rio dos Sinos ficou fora do contexto. As uvas da colônia italiana ainda estavam verdes.Para fortalecer o fenômeno sociocultural identificado como tradicionalismo e, posteriormente, como nativismo, também contribuíram outros intelectuais como Erico Verissimo, cujo romance O tempo e o vento, surgido em 1949, deu dimensão épica a práticas e ideias do pampa. No bojo desse movimento, surgiram vultos como o cantor Teixeirinha e seu “rival” Gildo de Freitas, ambos orgulhosos de ser “grossos barbaridade”; gaiteiros como os irmãos serranos Bertussi; e até um lagunense ligeiro, Pedro Raimundo, funcionário da Carris porto-alegrense, que fez fama no rádio do Rio de Janeiro, pilchado de gaúcho, inspirando até o pernambucano Luiz Gonzaga a se fantasiar de cangaceiro.Em 1952, Lessa introduziu na poderosa Rádio Farroupilha o programa Querência, precursor do Grande Rodeio Coringa. Em 1953, formou-se em Direito numa turma que daria vários políticos como Matheus Schmidt Filho e Wilson Vargas. Em 1954, Lessa teve aprovada com louvor no primeiro congresso tradicionalista de Santa Maria sua tese O sentido e o valor do tradicionalismo. Em 1955, sua peça teatral Não te assusta, Zacarias teve casa cheia por três noites em Porto Alegre, após o que rodou por dois meses pelo Interior. Em 1956, de alma lavada pelo sucesso de seus peões e prendas, Lessa foi para São Paulo a fim de gravar o disco Danças gaúchas com a cantora paulista Inezita Barroso. Bem-sucedido, ficou trabalhando por 18 anos na capital paulista. Ao voltar para Porto Alegre, em 1974, teve uma sensação de vitória ao constatar que “todo mundo sabia onde fica o monumento a Bento Gonçalves”, como disse no depoimento à Coleção IEL.O que começou como um esforço de resgate histórico virou festa que nenhuma autoridade gaúcha desdenha. Em 2019, o governo liderado por Eduardo Leite, jovem pelotense urbano, invoca um verso do hino rio-grandense para clamar por “novas façanhas” – o que será?Certamente, não será uma guerra contra o governo central, mas talvez um encontro de contas para zerar dívidas recíprocas e abrir caminho para recuperar a capacidade do Tesouro de arcar com as despesas do Estado. Em 1845, uma das façanhas farroupilhas foi receber do Império polpudas indenizações de guerra.Um século depois, os CTGs deram um cavalo-de-pau na história ao apresentar como síntese antropológica do pampa os casais formados por gentis cavaleiros dançarinos e graciosas gauchinhas bem-querer.
A Califórnia da Canção dissidente
Quando Lessa voltou ao Rio Grande, o tradicionalismo já tinha uma dissidência. A partir da Califórnia da Canção Nativa, iniciada em dezembro de 1971, em Uruguaiana, proliferaram no Interior festivais em que se digladiavam, num entrevero cordial, diversas tendências musicais que cantavam desde recuerdos guerreiros até práticas rurais como a doma equina e a esquila de ovelhas; e o ambientalismo, a resistência à tratoragem dos pastos nativos e o companheirismo das mulheres camponesas.Todo mundo ganhou nos festivais, nativistas uns, crioulos outros, mas alguns foram ficando para trás ou tomando rumos novos, como a música urbana, a latino-americana. Em meados da década de 1970, a Califórnia embretou os concorrentes em três categorias. Outros festivais, como o Musicanto, de Santa Rosa, se abriram até para países vizinhos. Por essa porta entrou o chamamé vindo da Argentina. Hoje rola uma espécie de revisão do tsunami tradicionalista.Em outubro, os músicos Texo Cabral e Clarissa Ferreira lideraram, no Salão de Atos da Ufrgs, o espetáculo Pago revisitado, que propôs “o resgate e a inclusão de esquecidos do nativismo”, como disse Cabral ao JC. Na abertura do show foi lembrado Paulo Ruschell, autor de Homens de preto, canção tropeira dos anos 1950 gravada até por Elis Regina. Membro de uma geração de músicos ecléticos, o cachoeirense Cabral tocou por três anos com Os Tapes e até hoje faz parte do Tambo do Bando, conjunto que confrontou o tradicionalismo com uma frase-estandarte: “Com os pés no galpão e a cabeça na galáxia”.Mais do que o ensaio histórico ou a ficção literária, foi a música a vertente mais rica do rodeio cultural parado pelo magro careca de Piratini. Da cabeça de Lessa saíram versos sintetizando uma das maiores lendas do Estado, a história do guri escravo castigado por ter perdido uma carreira de cavalo: “Negrinho do pastoreio/eu trago essa vela pra ti/peço que me devolvas/a querência que perdi”.Uma das marcas do cancioneiro gaúcho é a nostalgia rural. Quem primeiro bebeu nessa fonte foi o Conjunto Farroupilha, que nasceu no início dos anos 1950 cantando cantigas, a começar pelo clássico Negrinho. Em 1999, os irmãos Kleiton & Kledir incluíram a canção no CD Clássicos do Sul. Vitor Ramil fez em 2007 um show centrado “no Barbosa”. E não se pode esquecer de Renato Borghetti, o piá que se fez gaiteiro no palco do 35 CTG.
As prendas na berlinda
Depois de viajar 12 vezes aos EUA para visitar a filha Valéria e os netos, Nilza Gonçalves Lessa decidiu aquietar-se em Porto Alegre, onde mora. “A viagem é muito cansativa”, explica. Aos 87 anos, receberá em casa, no final do ano, os dois únicos netos seus e do marido, Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002), um dos fundadores do primeiro 35 Centro de Tradições Gaúchas, clube de danças e declamações que se reproduziu às centenas pelo mundo. “Só nos Estados Unidos existem oito CTGs”, informa ela, destacando que um deles, o CTG Saudades da Minha Terra, foi criado pela filha, Valéria. Ela viajou para os States em 1988 com o grupo de danças gaúchas Seu Flor e não voltou. Cinco anos depois, casou com um membro da comunidade judaica de New Jersey, onde vive. “Meus netos estão na universidade”, diz a avó, orgulhosa.Artesã de panos e bordados, Nilza faz peças inspiradas na fauna e na flora da Lagoa dos Patos, hobby adquirido em oficinas do Sebrae nos anos 1990, quando morou em Camaquã, ao lado do marido recém-aposentado. Vive agora em apê no 10º andar de um edifício da rua Riachuelo. Da janela do seu ateliê, vê o Guaíba de cima. Seu artesanato costuma ser vendido na festa farroupilha de setembro no Parque Harmonia, da qual foi a primeira patrona, eleita em 2012. Apesar de fragilizada pela idade, Nilza ainda questiona os membros do Movimento Tradicionalista Gaúcho sobre o uso (que ela considera abusivo e inadequado) dos vestidos das prendas de CTG. Segundo aprendeu “com o Lessa”, a roupa de sair de casa das mulheres campeiras era feita de panos baratos de algodão floreado, já que “antigamente todo mundo era pobre”.”Se quisermos cultivar a tradição”, diz ela, “não cabe fazer vestidos vistosos, de uma cor só, como o vermelho, usados por membros da realeza ou, então, pelas mulheres da noite…” Em outras palavras, a ex-professora-normalista, nascida e criada numa família de ferroviários de Santana do Livramento, adverte: as mulheres dos CTGs precisam tomar cuidado para, no afã de parecer nobres, não cair na vulgaridade.Rindo da comparação, a costureira Vilma, parceira de Nilza no ateliê, acha perda de tempo discutir com os (as) tradicionalistas, que se defendem afirmando que “os costumes mudaram”. De fato, para Vilma, a única coisa que não mudou é que, para fazer um vestido de prenda, toda costureira precisa de sete metros de pano, seja a reles chita ou algo “melhor”. É um grande mercado de trabalho para as costureiras profissionais e amadoras. Cobrando R$ 250,00 pelo feitio, Vilma já nem tenta convencer as freguesas de que o excesso de enfeites não honra a tradição nem orna a figura da prenda.Em longo depoimento ao professor Luis Augusto Fischer, em 1999, Barbosa Lessa abonou o comportamento das famílias tradicionalistas: “Os Centros de Tradições Gaúchas podem ter os seus erros, podem ter os seus exageros, as suas distorções, mas onde eles são mais autênticos, essas pessoas que frequentam os CTGs, é no convívio com os filhos, no apoio às filhas. A prenda é a coisa mais sensacional do mundo. Que bom que uma mãe ache que a sua filha, por ser prenda, não precisa estar procurando pela internet onde é que está a chance de se projetar; se projeta no meio dos amigos, de maneira sincera” (publicado na Coleção IEL).
O visionário do Hotel Majestic
Das personagens da cultura gaúcha, o mais parecido com Lessa, hoje, parece ser Luiz Coronel, advogado, poeta e publicitário que tem uma queda pelo nativismo. Os dois têm comum a infância passada em Piratini, revela Coronel: “Minha mãe, Dona Amelinha, em segundas núpcias foi morar na pequena capital farroupilha, funcionária do Posto de Higiene, como se chamava a unidade de saúde municipal”.Separados por uma década (Coronel nasceu em 1938, em Bagé), os dois só se encontrariam em meados dos anos 1970, quando Lessa, de volta ao Rio Grande, retomou seu posto de general do movimento cultural desencadeado 25 anos antes. “Vivíamos os ciclos dos festivais, liderados pela Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana”, lembra Coronel, ganhador da Calhandra de Ouro de 1973 com A morte de Gaudêncio Sete Luas, parceria com Marco Aurélio Vasconcellos cantada por Leopoldo Rassier.Em depoimento ao JC, o poeta lembrou um episódio típico da ditadura: nomeado secretário da Cultura pelo governador José Augusto Amaral de Souza (seu colega de Direito nos anos 1950, deputado federal nomeado para o quadriênio 1979-1983 pelo general Médici), Lessa convidou para o cargo de subsecretário o “conterrâneo” Coronel, mas seu nome foi vetado pelos órgãos de segurança. Muito tempo depois, Lessa ainda dava mostra de que tinha uma dívida com o amigo. Nada a ver.Como secretário, Lessa viabilizou a transformação do Hotel Majestic na Casa de Cultura Mário Quintana. Uma de suas últimas aparições públicas foi como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2000. Diante de alguns muxoxos na plateia, o escritor e cineasta Tabajara Ruas publicou um artigo em que reconheceu os méritos impagáveis do precursor do nativismo.
Música: ‘o melhor dentro de mim’
Produzido em 2001 por Juarez Fonseca, Carlos Branco e Marcos Abreu, o CD Barbosa Lessa 50 Anos de música sintetiza o melhor da obra musical de Barbosa Lessa. São 26 das mais representativas canções do compositor, que gravou um total de 53 canções e deixou outras sete prontas para gravar. Cerca de uma dúzia delas são fruto da parceria com Paixão Cortes, companheiro de pesquisas de danças gaúchas na primeira metade dos anos 1950.Ouvindo esse disco, fica claro que a dupla recolheu fragmentos de melodias, ritmos e versos posteriormente retrabalhados. Por isso na legenda explicativa de algumas músicas, como Pezinho (“Ai bota aqui, ai bota ali o teu pezinho”), aparece a expressão “tema recolhido e adaptado”. Foi esse acervo musical captado principalmente perto de Porto Alegre que deu asas aos CTGs.O que mais impressiona no CD é a intensidade das vozes femininas, a começar pelo vocal do Conjunto Farroupilha, que defende brilhantemente cinco canções. A mais famosa é Negrinho do Pastoreio, composta em 1950, mas somente gravada em 1953 – arranjo de Aldo Taranto — pelo conjunto musical nascido no auditório da Rádio Farroupilha, a mais poderosa do Sul, na época.Depois vem Inezita Barroso, com três músicas transformadas em hits nacionais, entre elas Balaio. A valsa Quero-quero, gravada por Luely Figueiró em 1956 com a orquestra de Rafael Puglielli, foi a primeira música feita por Lessa – ele tinha 17 anos, era morador recente de Porto Alegre. Também chama a atenção a interpretação de Stelinha Egg para a Cantiga de Eira, gravada em 1957 na Odeon com arranjo do maestro Lindolfo Gaya. Outra raridade é Feitiçoíndio, canção missioneira gravada em 1957 pela cantora paulista Ana Silva, a voz aguda da dupla sertaneja Cascatinha & Inhana.Uma das surpresas é o xote Aroeira, gravado em 1961 por Luiz Gonzaga. Também se destaca em duas composições (Quando sopra o minuano e Cantiga do tropeiro) a voz de Chico Raymundo, vocalista do conjunto Titulares do Ritmo, que brilhou antes do surgimento do MPB-4. Por fim, temos duas gravações originais de Noel Guarani: Milonga do moço novo (“Pra deixar de ser bagual”), de 1973; e, de 1975, quando Lessa tinha recém-voltado ao Rio Grande, Balseiros do Rio Uruguai (“Viva viva, veio a enchente/o Uruguai transbordou/vai dar serviço pra gente”).Algumas músicas fazem parte da trilha de filmes. Segundo Juarez Fonseca, o conteúdo do CD foi salvo por Carlos Branco e Marcos Abreu de discos originais guardados na casa de Lessa em Camaquã, seu refúgio no final da década de 80, após se aposentar. Foi um trabalho patrocinado pela CEEE e pela prefeitura de Porto Alegre.Ao ouvir o CD, síntese de sua obra musical, Lessa se emocionou e escreveu um pequeno texto, transcrito na contracapa do libreto: “A música, aparentemente esquecida, ainda é o melhor dentro de mim: uma alma viva acalentando emoção. Rejuvenesci!”, disse. Já lutando contra o câncer – “até no hospital fumava escondido”, lembra um conterrâneo –, Lessa morreu seis meses depois, em março de 2002.
Textos em vias de reedição
Na última edição dos festejos farroupilhas, a editora Martins Livreiro manifestou à viúva Nilza Lessa o interesse em reeditar títulos de Barbosa Lessa. Sem paciência ou disposição para negociar direitos autorais, ela passou a tarefa ao filho Guilherme, 59 anos, que trabalha com informática em Porto Alegre. Toda ela voltada para as raízes do Rio Grande, a obra do folclorista foi escrita inicialmente para dar vazão a seus sentimentos nativos e conhecimentos históricos; posteriormente, sem sair da trilha aberta nas pesquisas dos anos 1950, ele escreveu para atender a encomendas de instituições públicas e privadas.Confira a relação de títulos:• As mais belas poesias gauchescas, seleção e notas, Tip. Goldman, Porto Alegre, 1951• História do Chimarrão, Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, 1953• O Sentido e o Valor do Tradicionalismo, tese aprovada pelo Primeiro Congresso Tradicionalista do RS, Santa Maria, 1954• Manual de Danças Gaúchas, co-autoria com Paixão Côrtes, Irmãos Vitale, São Paulo, 1956• O Boi das Aspas de Ouro, contos, Ed. Globo, Porto Alegre, 1958• Os Guaxos, romance, Ed. Francisco Alves, São Paulo, 1959• Arquivo de Danças Brasileiras, plaquete, Ed. Francisco Alves, São Paulo, 1959• Cancioneiro do Rio Grande, letra e música, Ed. Seresta, São Paulo, 1962• Nova História do Brasil, Ed. Globo, Porto Alegre, 1967• O Justiceiro da Estrada, quadrinhos, distr. Scania-Vabis, 1973• Danças e Andanças da Tradição Gaúcha, co-autoria com Paixão Côrtes, Ed. Garatuja, Porto Alegre, 1975• Porto Alegre: Terra-Gente, Epatur, Porto Alegre, 1976• Uma História Real, biografia, Grupo Joaquim Oliveira, Porto Alegre, 1977• Mão Gaúcha – Introdução ao Artesanato Sul-Rio-Grandense, ilustrações de Fernando Jorge Uberti, Fundação Gaúcha do Trabalho, Porto Alegre, 1978• Rodeio dos Ventos, contos, Ed. Globo/RBS, Porto Alegre, 1978• O Rio Grande do Sul através de Debret, relatório ilustrado, Samrig, Porto Alegre, 1978• Usos e Costumes Gaúchos, calendário, ilustrações de Fernando Jorge Uberti, Ipiranga/Fertisul, Porto Alegre, 1978• Pequena Antologia do Bolicho, Epatur, Porto Alegre, 1978• Lendas Gaúchas, pranchas de Nelson Jungbluth, brinde Riocell, Guaíba, 1979• Negrinho do Pastoreio, com pranchas de J. Antônio Vieira, brinde Riocell, Guaíba, 1983• Rio Grande do Sul, Prazer em Conhecê-lo, história, Ed. Globo, Porto Alegre, 1984• São Miguel da Humanidade – Missões, edição especial Samrig, 1984• Pró-Memória Farroupilha, fotos Liane Neves, Banco Bamerindus, Curitiba, 1985• Nativismo, um Fenômeno Social Gaúcho, L&PM, Porto Alegre, 1985• Aspectos da Sociabilidade do Gaúcho, co-autoria com Paixão Côrtes, Represom, Porto Alegre, 1985• Domingos José de Almeida – biografia, Ed. Tchê/RBS, Porto Alegre, 1985• Borges de Medeiros – biografia, Ed. Tchê/RBS, Porto Alegre, 1985• Histórias dos Índios, infanto-juvenil, ilustrações Hélio A. Nardi Filho, Ed. Tchê, Porto Alegre, 1985• Histórias das Missões, infanto-juvenil, ilustrações Hélio A. Nardi Filho, Ed. Tchê, Porto Alegre, 1985• Aventuras na Serra do Pinto, infanto-juvenil, ilustrações Hélio A. Nardi Filho, Ed. Tchê, Porto Alegre, 1986• O Burrinho Marco Polo, infanto-juvenil, ilustrações Hélio A. Nardi Filho, Ed. Tchê, Porto Alegre, 1986• O Tesouro do Arroio do Conde, infanto-juvenil, ilustrações Hélio A. Nardi Filho, Ed. Tchê, Porto Alegre, 1985• República das Carretas, romance histórico, Ed. Tchê, Porto Alegre, 1986• O Continente do Rio Grande, quadrinhos de Flávio Colin, Ed. L&PM, brinde Ipiranga, Porto Alegre, 1987• Era de Aré, estudo indigenista, Ed. Globo, São Paulo, 1993• Almanaque dos Gaúchos – 1º semestre, Martins Livreiro Editora, Porto Alegre, 1997• Almanaque dos Gaúchos – 2º semestre, Martins Livreiro Editora, Porto Alegre, 1997Geraldo Hasse é jornalista. Nascido em Cachoeira do Sul, formou-se em Pelotas. Escreveu uma dezena de livros sobre agricultura, economia, história e meio ambiente. É autor de biografia sobre o escritor e professor Darcy Azambuja.
Fonte: JC